Portador de doença de Chagas, o pedreiro Cândido Novaes de Almeida, 60 anos, vive em Santo Antônio de Jesus, cidade a 187 km de Salvador, mas faz seu tratamento na capital usando cartão do Sistema Único de Saúde (SUS) registrado no endereço de sua cunhada, Magnólia Rodrigues dos Santos, que mora no bairro de Itapuã. A alternativa de cadastramento foi a única encontrada pela família para fazer o tratamento no Hospital das Clínicas (Salvador).
Além do pedreiro, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) estima que 700 mil pessoas residentes no interior tenham emitido o cartão com endereços da capital, contradizendo as normas do Ministério da Saúde. Pela regulamentação, os cartões - que facilitam o acesso da população aos serviços médicos - somente podem ser emitidos na cidade de residência do cidadão. Com isso, o número de cartões habilitados emSalvador, entre definitivos e provisórios, chega a 3,5 milhões - 500 mil a mais do que o número de habitantes da cidade.
A manobra dos interioranos estrangula o sistema de saúde na capital, principalmente no atendimento clínico e na distribuição de medicamentos. “Cada município recebe verba de acordo com o número de habitantes. Como a capital acolhe muita gente de outros municípios, os soteropolitanos ficam prejudicados. No centro de saúde da Rua Carlos Gomes, por exemplo, às vezes falta medicamento por conta do excesso de gente do interior. Chegam ônibus lotados de pacientes diariamente”, avalia o coordenador do núcleo de gestão da informação da SMS, Ariovaldo Borges Júnior.
O pedreiro Cândido tem no cadastramento irregular sua única esperança de sobrevivência. “Na minha cidade não tem nenhum serviço de que eu preciso, principalmente laboratórios e medicamentos. Se eu não fizesse isso, não teria como fazer os exames preparatórios para a cirurgia”, justifica- se Cândido, que aguarda há um ano na fila para realizar o procedimento cirúrgico no Hospital das Clínicas. A cunhada dele, que também é de Santo Antônio de Jesus, revela que a família faz sua casa de “pensão da saúde”. “Não podemos ficar adoecendo no interior. Quando alguém precisa de algum procedimento mais sério acabo trazendo para cá. No hospital da cidade, só fazem curativo”, explicou Magnólia.
Moradora da Fazenda Grande do Retiro, a telefonista Arlete Vaz da Silva sente os reflexos do compartilhamento. “Para conseguir ficha, temos que dormir na fila. O pessoal do interior chega nos ônibus e toma o lugar de quem é de Salvador”, contou Arlete, que na semana passada buscava no Hospital das Clínicas atendimento para a sogra.
Repasse
A SMS pretende cobrar pelo atendimento de pacientes do interior das prefeituras de origem. Através do Sistema Vida, está sendo feito o cruzamento de dados dos cartões do SUS emitidos na capital com dados da Justiça Eleitoral e da Secretaria da Saúde do Estado (Sesab). “O objetivo é criar, a partir de 2010, um cartão municipal de saúde, que será interligado com os atendimentos médicos realizados nas unidades da prefeitura. Ele vai registrar o que foi feito por cada paciente”, explica Borges.
Ele esclarece que os interioranos não deixarão de ser atendidos em Salvador. “Não podemos negar atendimento, mas vamos registrar a cidade de origem do paciente. As prefeituras recebem verbas para custear os serviços à população, mas acabam se beneficiando com os serviços da capital”, disse.
Cartão não é condição para atendimento
O Ministério da Saúde destaca que a apresentação do cartão do SUS não é uma exigência para a efetivação do atendimento. “Ninguém deixa de ser atendido no SUS porque não tem cartão”, informou Rodrigo Hilário, coordenador do Núcleo de Atendimento à Imprensa.
Ele explica que o cartão pode ser usado como facilitador. “O cartão agiliza o atendimento nas unidades de saúde, mas ele não é condição para que as pessoas sejam atendidas. Quem chega às unidades sem cartão recebe atendimento normalmente”, completou.
Pacientes do interior ‘invadem’capital
Com uma hemorragia no útero, a aposentada Julieta Olveira Silva, 65, viajou na última quarta-feira cerca de 315 km de Serrolândia para Salvador em um carro da prefeitura do município. Ela não havia conseguido transferência pelo sistema de regulação da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab) e, com malas em punho, a aposentada desembarcou na porta do Hospital Roberto Santos em busca de socorro para realizar uma histerectomia (retirada do útero). “A regulação disse que não tinha vaga e pediu para esperarmos em casa. Se ela ficasse lá, ia acabar morrendo. Queria interná-la, mas, como não consegui, ficaremos na casa da minha irmã. Pelo menos em Salvador, se acontecer algo, podemos dar socorro mais rápido”, justificou a filha Adenilza Oliveira de Souza.
O diretor do Hospital Roberto Santos, Paulo Barbosa, explica que o fluxo de pacientes do interior varia de acordo com a especialidade. “As emergências cirúrgica e pediátrica têm grande contigente de pacientes do interior pelo fato de a maioria dos municípios não ter atendimento hospitalar adequado”.
No atendimento de urgência e no ambulatório, a coisa fica mais séria. “Somos um hospital de referência, acabamos recebendo cerca de 40% do fluxo de pacientes do interior”. Acostumado, o motorista da prefeitura de Serrolândia Maruzan Pessoa da Silva conta que faz o trajeto em uma van do município com 12 passageiros pelo menos três vezes na semana. “Trago o pessoal e saio distribuindo pelos hospitais. No fim do dia, recolho o povo e pegamos a estrada de volta. Para casos de emergência, há sempre ambulância de prontidão para transferir para Salvador”, diz.
O presidente do Sindicato dos Médicos da Bahia, José Cayres, também plantonista do Roberto Santos, revela que muitos pacientes fingem que são da capital para ter atendimento mais rápido. “Há muitos pacientes que vêm na ambulância do interior, param na porta do hospital e entram em um táxi. Quando chegam, dão um endereço de Salvador”, explicou.
O procedimento recomendado é que o paciente seja transferido pela Sesab, de acordo com a Central de Regulação de Leitos do estado. “Apesar de burlar as regras, não podemos deixar de atender ninguém”, diz Cayres.
Sesab aposta na descentralização
O diretor da rede própria da Sesab, Renan Araújo, explica que o fluxo de pacientes do interior para a capital faz parte de um processo histórico de concentração de especialidades em Salvador. “Às vezes o paciente vem sem oxigênio, sem relatório, nem exames básicos, que alguns municípios não estão fazendo. No Ernesto Simões, por exemplo, tem dias que há fila de ambulâncias do interior”, informou.
Ele aposta na interiorização dos serviços para reduzir o fluxo à capital. “Estamos fazendo investimentos a longo prazo para descentralizar a oferta dos serviços de saúde. Em Barreiras, foi inaugurado um centro de neurologia, o que já reduz parte do fluxo”, disse.
Araújo explica que há outros investimentos em curso, como o Hospital do Recôncavo (em Santo Antônio de Jesus, que deve ser inaugurado em novembro), 20 leitos de UTI em Irecê, desenvolvimento de redes de neurologia em Jequié, Feira de Santana e Porto Seguro, além das recentes inaugurações do Hospital de Juazeiro e reforma do Clériston Andrade (Feira de Santana).
Cartões pelo país
3,5 milhões - É o número de cartões registrados em Salvador, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS).
500 mil - cadastros a mais do que o número de habitantes da capital baiana
700 mil - Segundo estimativa da SMS, é o número de pessoas que moram no interior do estado e emitiram o cartão do SUS registrando-se em algum endereço de Salvador, normalmente de parentes
130 milhões - É o número de cartões emitidos em todo o país. O Ministério da Saúde estima que 70% da população brasileira (140 milhões de pessoas) tenha o SUS como único meio de acesso a serviços de saúde
Médico alerta que viagens podem prejudicar paciente
O presidente do Sindicato dos Médicos da Bahia, José Cayres, diz que as viagens do interior para a capital podem piorar a saúde do paciente. “O estresse da viagem, que muitas vezes acontece sem o aporte necessário, acaba agravando o quadro. O pior é que muitos vêm sem o menor critério clínico, pois falta estrutura nas cidades”, afirma.
Ministério estima que 70% do país dependa do SUS
De acordo com dados divulgados pelo Ministério da Saúde, em todo o Brasil há 130 milhões de pessoas inscritas com cartão do SUS emitido em seus nomes. A estimativa é de que 90 milhões desses cadastros sejam válidos e efetivos. Os outros 40 milhões ainda precisam passar por uma checagem de dados para seremvalidados.
Estima- se que entre 5% e 10% dos 40 milhões restantes são de nomes duplicados. O ministério destacou que cerca de 140 milhões de pessoas (aproximadamente 70% da população brasileira) têm o SUS como único meio de acesso aos serviços de saúde. Para se cadastrar para obter o cartão do SUS, é preciso fazer um cadastro na unidade básica de saúde mais perto da sua casa. Para isto, é só apresentar um documento de identidade e um comprovante de residência.