domingo, 3 de fevereiro de 2013
Juiz-Gerivando neiva:"Hoje cedo li uma notícia na imprensa baiana que me atordoou completamente"
Eis a notícia: “Moradores de rua passam a ser monitorados em tempo real – A Secretaria Municipal de Promoção Social e Combate à Pobreza (Semps) está usando novas câmeras instaladas no Centro de Salvador para monitorar a população que vive na rua. A ideia é evitar delitos e observar o uso abusivo de drogas que se enquadra nos casos de internação compulsória previstos em lei.”Leia mais…
Na minha ingenuidade, pensei: ora, se estão na rua é porque não têm casa. Logo, não seria melhor solução, providenciar-lhes casa, educação, saúde e emprego? Por que vigiá-los para que não cometam crimes? Por que não cuidar para que outras pessoas não sofram o mesmo problema da falta de condições básicas a ponto de preferirem a rua??
O problema é que esta pode ser uma solução que realmente acabe com o problema e talvez não seja isto que deseja o sistema. Ora, o que fazer com todo o aparato bélico e tecnológico, criado para vender a ilusão de segurança para a população? Policiais, armas, balas, viaturas, rádios, radares, cercas elétricas, alarmes, seguranças particulares… O que fazer com tudo isso?
Delirando mais ainda, adotando o mesmo critério de buscar soluções pequenas e que de fato resolvessem os problemas, pensei no grande e absurdo sistema que se transformou o Poder Judiciário e não tive coragem de prosseguir: o que fazer com tantos juízes, desembargadores, ministros, fóruns e tribunais? Melhor parar mesmo e disfarçar a desesperança cantarolando: São Jorge, por favor, me empresta o dragão…
Nesta viagem, lembrei-me de um texto que recebi pela Internet ainda no tempo em que a comunicação se dava através de mensagens chamadas de e-mail, que utilizei muito em reuniões com servidores do Poder Judiciário quando queria lhes mostrar que o sistema era absurdamente burocrático e sem sentido, podendo ser utilizada novas formas de fazer o mesmo serviço e alcançar o mesmo resultado sem causar prejuízo a quem quer que seja.
O texto se chamava “A fábula dos porcos assados” e conta a história de um incêndio em um bosque em que habitavam porcos, que foram queimados e a pele“pururucada”. Com a descoberta, um grande sistema foi pensado e montado para aprimorar a queima de bosques para se obter porcos à pururuca. Depois de altíssimos investimentos em estudos e tecnologias, alguém teve a audácia de pensar que poderia se obter porcos à pururuca simplesmente matando antes o porco e levando a carne a uma chapa metálica sobre carvão em brasa. O projeto foi apresentado ao diretor geral, mas sumariamente rejeitado, pois não havia mais como desmontar o grande sistema pensado e montado por tantas ilustres figuras.
Voltando ao começo, sem fábulas, não seria muito mais sensato e lógico resolver o problema dos sem-teto oferecendo-lhes exatamente o que lhes falta: o teto!
Para quem ficou curioso e com tempo de sobra, eis a fábula dos porcos assados:
Certa vez, aconteceu um incêndio num bosque. Os porcos que ali viviam foram assados pelo fogo e suas peles duras pururucaram, tornando-se apetitosamente crocantes. Os homens daquela região, habituados a comer carne crua, degustaram os porcos transformados em torresmos e acharam delicioso o sabor e o aroma da carne assada. A partir dessa revolucionária experiência gastronômica, toda vez que desejavam comer porco assado e torresmo incendiavam todo um bosque inteiro.
Os homens daquela região montaram um aparato técnico, científico e administrativo monumental para o assamento de porcos. Este aparato foi crescendo assustadoramente passando a envolver milhões de pessoas.
Foram desenvolvidas máquinas e equipamentos sofisticados para executar tarefas de diversos tipos; funcionários foram especialmente treinados para acender fogo e incendiar bosques e alocados em núcleos regionais para trabalhar em períodos diurnos e noturnos. Surgiram, ainda, especialistas em ventos, em chuvas, em árvores, em bosques, em pururuca e torresmo e, enfim, especialistas de todos os tipos possíveis e imagináveis. Os cargos foram surgindo sem parar: o de diretor geral de assamento, o de diretor de técnicas ígneas com seu Conselho de Assessores, o de administrador geral de reflorestamento, o de diretor disso e daquilo, além de centenas de cargos de chefia e sub-chefia. Foram criados departamentos para o treinamento profissional em Porcologia, institutos superiores de cultura e técnicas alimentícias e diversos centros responsáveis pelas reformas de caráter igneooperativo. Foi formulado um Plano Nacional para a Formação de Bosques, Planabo, cuja meta plurianual seria implantar bosques de acordo com as técnicas mais modernas de reflorestamento. Foram trazidos do exterior cientistas para o estudo e seleção das melhores variedades de árvores e sementes, para o estudo de fenômenos pluviométricos, para o estudo do fogo e de matrizes de porcos e para desenvolver pesquisas sobre o extraordinário fenômeno da pururucagem. Poderíamos ficar dezenas de anos seguidos descrevendo o faraônico aparato instituído para coordenar, implementar, controlar e manter todo o gigantesco processo.
Apesar da enorme soma de recursos públicos investidos no funcionamento deste gigantesco aparato, no processo de assamento os animais ficavam, ou parcialmente crus, ou demasiadamente tostados, desagradando milhões de paladares cada vez mais refinados.
As queixas eram justificadas: os impostos pagos para custear o aparato eram escorchantes, a poluição causada pelos incêndios e a qualidade da carne assada, devido, supostamente, à ampliação da escala de produção, cada vez piores. Foram aumentando os protestos na imprensa, crescendo as insatisfações na opinião pública, os políticos aproveitando para fazer promessas de campanha e as mobilizações da comunidade tornando consensual a necessidade urgente de reforma no modelo de assamento de porcos.
Congressos, seminários e conferências passaram a ser realizados na busca de uma solução para o problema. Apesar do extraordinário esforço empreendido por milhares de especialistas em assamento de porcos, inclusive com títulos de doutor obtidos no exterior, os resultados alcançados eram desanimadores. Repetiam-se, assim, os congressos, seminários e conferências. Os especialistas continuaram insistindo que as causas do mau funcionamento do sistema eram a indisciplina dos porcos, que não permaneciam onde deveriam ficar no momento do incêndio do bosque; a natureza indomável do fogo e dos ventos; e, ainda, a má seleção das variedades de árvores, muitas delas inadequadas para o assamento, a excessiva umidade da terra e o insatisfatório serviço de meteorologia que não fornecia informações exatas sobre o lugar, a hora e a quantidade da precipitação de chuvas. Os especialistas formaram correntes de pensamento e desenvolveram doutrinas que geraram disputas acirradas nas Universidades. Milhares de obras de cunho científico foram publicadas, lançadas revistas com prestígio internacional, criados cursos de pós-graduação para formar cientistas além de institutos para desenvolver pesquisas sobre porcos e assamento de porcos.
Até que, certo dia, João Bom-Senso, um incendiador categoria C, nível 4, classe INC, percebeu que o problema era de fácil solução. Bastava, primeiramente, matar, limpar e cortar o porco escolhido e, depois, colocar a carne numa armação metálica sobre carvão em brasa, até que, sob o efeito do calor, a carne ficasse assada. A grande vantagem desse método era a possibilidade de cada um temperar a carne de acordo com o seu paladar e assá-la em sua própria casa reunindo os amigos para beber, conversar, solidificar laços de cunho político, religioso, profissional e/ou apenas afetivo.
Tendo sido informado sobre as idéias subversivas deste perigoso funcionário, o diretor geral de assamento mandou chamá-lo ao seu gabinete e, depois de ouvi-lo pacientemente, disse-lhe em tom incisivo:
Tudo o que o senhor me explicou é teoricamente muito bonito, diria até maravilhoso, mas jamais funcionaria na prática. O que o senhor faria, por exemplo, com os anemotécnicos, caso viéssemos a aplicar a sua bem intencionada idéia? Onde seriam empregados os pesquisadores que produzem todo o conhecimento necessário para aperfeiçoar as técnicas de incêndio e de reflorestamento?
— Não sei, disse João.
— E os especialistas em sementes? Em árvores importadas? E os desenhistas de instalações para porcos e os operadores de máquinas para destrinchar carne assada?
— Não sei.
— E os cientistas que ficaram anos seguidos especializando-se no exterior e cuja formação custou tantos recursos ao país? E os pesquisadores que têm trabalhado na elaboração do Programa de Reforma e Melhoramento do Sistema de Assamento de Porcos? O quê faço com eles se a solução que o senhor me traz resolver tudo?
— Não sei, repetiu João, encabulado.
— O senhor percebe que a sua “maravilhosa” idéia pode desencadear uma crise de proporções catastróficas no país? O senhor não vê que se tudo fosse tão simples, nossos especialistas já teriam encontrado a solução há muito, muito, tempo atrás? O senhor, com certeza, compreende que eu não posso simplesmente convocar os milhares de técnicos, engenheiros e pesquisadores com PhD e dizer-lhes que tudo se resume a utilizar brasinhas, sem chamas, para assar porcos, e bye-bye para todos vocês! O que o senhor espera que eu faça com os quilômetros e quilômetros quadrados de bosques já preparados, cujas árvores não dão frutos e nem têm folhas para dar sombra e abrigo aos pássaros?
— Não sei, não, senhor.
— O senhor não reconhece que nosso Instituto de Porcopirotecnia é constituído por personalidades científicas do mais extraordinário gabarito?
— Sim, eu acredito que sim.
— O que eu faria com figuras de tão grande importância para o país?
— Não sei.
— Viu? O senhor não sabe de nada! O que precisamos são soluções viáveis para problemas práticos específicos. Por exemplo, como melhorar as anemotécnicas atualmente utilizadas, como formar rapidamente profissionais para preencher as vagas existentes na região Oeste do país ou como construir instalações para porcos com mais de sete andares que sejam funcionais. Temos que caminhar muito ainda para aperfeiçoar o sistema, o senhor me entende? O que precisamos, acima de tudo, é de sensatez e não de belas intenções!
— Realmente, eu estou perplexo!, respondeu João.
— Bem, agora que o senhor conhece as dimensões do problema, não saia espalhando por aí a sua insensata idéia. Pode ser muito perigoso. O problema é bem mais sério e complexo do que o senhor jamais poderia imaginar. Agora, entre nós, recomendo que não insista nessa sua idéia boba pois isso poderia trazer problemas para o senhor no seu cargo. Não por mim, o senhor entende. Eu falo isso para o seu próprio bem, porque o compreendo, entendo perfeitamente o seu posicionamento, mas o senhor sabe que pode encontrar outro superior menos compreensivo, não é mesmo?
João Bom-Senso não falou mais um a. Meio atordoado, meio assustado, envergonhado por ter transmitido a sua estúpida idéia ao diretor geral, saiu de fininho e ninguém nunca mais o viu. Os boatos se espalharam e tornou-se hábito dizer em reuniões de Reforma do Sistema, em tom de chacota, de forma cínica até, que falta Bom-Senso.