domingo, 3 de fevereiro de 2013
"Ninguém está preparado para uma tragédia dessa proporção", diz fotógrafo da perícia de Santa Maria
Marcos Chichelero, 25 anos, está duplamente envolvido na tragédia da boate Kiss, em Santa Maria (RS). Pessoalmente, porque estuda no curso que mais perdeu alunos da Universidade Federal de Santa Maria, o de Agronomia. E profissionalmente, porque trabalha como fotógrafo criminalista e, desde domingo, foi todos os dias na boate Kiss registrar imagens para a investigação. Além disso, fotografou o rosto de várias vítimas, quando os corpos estavam expostos no Centro Desportivo Municipal (CDM), em Santa Maria.
Fotógrafo criminalista desde 2010, Chichelero conta que, como está acostumado com o serviço, geralmente não se abala diante de um cadáver. Não foi o caso desta tragédia. "Poderia estar trabalhando há cem anos na perícia que não estaria preparado para aquilo."
"Eu estava em Alegrete, em uma formatura, com um colega da perícia. Estávamos voltando de lá, após a festa, quando ele parou o carro. Eu estava dormindo e acordei. Ele voltou pálido, assustado. Era por volta das 6h. A tragédia já tinha acontecido. Ele me disse: "me ligaram de Santa Maria, aconteceu uma tragédia e morreram mais de 50 pessoas". Eu não acreditei porque achei que era brincadeira. De vez em quando, a gente que trabalha na perícia faz esse tipo de comentário para assustar quem está de plantão. Mas, em seguida, mais pessoas ligaram querendo saber se a gente estava na boate. Daí eu passei a acreditar. Nós, então, ligamos o rádio para saber mais informações e era tudo o que a emissora falava.
Logo em seguida, um fotógrafo criminalista que estava de plantão me ligou para saber onde eu estava. Já passavam de 200 mortos nessa hora. Eu disse que iria chegar em Santa Maria, passar em casa para pegar meu equipamento e já correria para o local do incêndio para ajudar no trabalho. Todo mundo estava mobilizado. Quem estava de férias voltou para ajudar. Peguei meu equipamento e fui ao CDM, mas logo fui para a Kiss, por volta de 8h30 de domingo.
Quando cheguei, os corpos das vítimas ainda estavam sendo removidos. Botei a máscara e entrei na boate. Quando cheguei no banheiro vi a pilha de corpos amontoados.
Daí, fiquei apavorado. A gente está acostumando a lidar com a morte, a tirar fotos de corpos. Mas, uma tragédia dessa proporção, ninguém está preparado. Os corpos eram removidos e organizados no chão da boate para serem colocados no caminhão. Traziam um monte e colocavam de quatro em quatro no caminhão. A gente ficou um pouco ali, viu que ainda tinha muita fumaça e, por isso, foi até o CDM.
Na CDM vimos outra cena de holocausto. Os corpos estavam todos no chão, um do lado do outro. Eles estavam todos separados. Tinham três fileiras e meia só de homens e outras duas e meia só de mulheres. Estávamos em três fotógrafos criminalistas e três peritos para identificar todos os mortos. A gente fotografava os documentos das vítimas e o rosto delas, como se fosse uma foto para o RG. Essas fotos vão todas para os inquéritos.
Eu sozinho tirei fotos de mais de cem pessoas. Algumas delas eu conhecia de vista. Tive de ligar no modo ON, porque se eu olhasse para o lado dava uma coisa assim estranha. Muitas vezes tive de parar, sair dali, tirar a máscara para dar uma respirada. Eu tinha que fazer aquilo o mais rápido possível.
Eu estava sem dormir pois tinha ido a um baile. Estava cansado. Só fui comer um pastel às 14h30. Depois do "almoço", fui fazer as fotos preliminares da boate. Fizemos uma varredura do local. Em plano aberto, fotografamos todo o local. Conforme vai passando o tempo, vai entrando mais gente no local e a cena pode ser alterada.
Desde domingo, fui quase todos os dias à boate tirar fotos. Só na quinta-feira que eu não fui, pois estava com um pouco de tosse.
A gente entra na boate, com todo o equipamento de proteção, e fica umas duas horas lá dentro. Mas mesmo assim a gente acaba respirando um pouco. Minha roupa, minha mochila e equipamento estão com o cheiro da fumaça.
Lá dentro ainda tem bastante pertences das vítimas como tênis e brincos. Foram removidas poucas coisas de lá. Uma foto que eu fiz e me chamou atenção foi a de um ursinho de pelúcia em um chaveiro no meio das cinzas. Para mim, é simbólica. Tinham muitos jovens ali.
Depois da varredura, a gente fotografa o que os peritos pedem. Por exemplo, a chave de luz, as portas. Essas coisas.
Ainda não deu para cair a ficha. Todos os dias estou trabalhando. Procuro nem pensar muito no que aconteceu para não ficar abalado. Mas, no primeiro dia, por exemplo, não dormi. Ligava para colegas para conversar e ver como estavam. Eu sei que meu trabalho precisa ser feito da maneira mais rápida possível e, claro, da melhor maneira possível. O trabalho da perícia é fundamental neste caso.
O pessoal da perícia que é de Santa Maria está abalado. Alguns colegas pediram folga para se recuperarem. Eu não me considero, digamos assim, emotivo para trabalhar em locais de crimes. Sempre trabalhei com isso. Faço isso desde 2010. Mas poderia estar trabalhando há cem anos na perícia que não estaria preparado para aquilo."FONTE:UOL