domingo, 16 de junho de 2013
A PEC 37 é feita para punir os acertos do Ministério Público
No próximo dia 26, a Câmara dos Deputados colocará em votação, com ou sem acordo, segundo o presidente da Casa, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), a emenda constitucional número 37, que pretende tirar do Ministério Público o poder de conduzir investigações criminais. Se for aprovada, a emenda colocará o Brasil numa infausta lista que reúne Quênia, Uganda e Indonésia, países onde o Ministério Público é amordaçado. Para o procurador de Justiça do Rio Grande do Sul Lenio Streck, (foto)professor da Scuola Dottorale Tulio Scarelli, em Roma, e da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, a medida é uma tentativa de enterrar investigações sobre políticos. “O Ministério Público é pago para defender interesses públicos que historicamente serviram a uma minoria. Contrariar esses interesses é fazer inimigos”, disse ao site de VEJA.
A tese da exclusividade da polícia nas investigações, conforme prevê a PEC 37, prejudicaria órgãos que se dedicam à apuração de ilícitos penais, incluindo a Receita Federal e o Banco Central. Quantos processos poderiam ser paralisados? É difícil falar em números. Talvez fosse melhor falar em déficit qualitativo. A história nos mostra que Banco Central, Tribunal de Contas e outros órgãos são fundamentais na apuração dos crimes do “andar de cima” da sociedade. Esse talvez seja o principal problema que a PEC 37 parece querer esconder. Não há nenhum indicativo que o combate aos crimes do colarinho branco e similares venha a ser melhorado pela PEC. Ao contrário: até as pedras sabem que a exclusividade da polícia geraria um enorme prejuízo de qualidade nas investigações.
O MP frequentemente investiga parlamentares e é muito comum que ele apresente denúncias contra deputados e senadores. A aprovação da PEC poderia ser uma retaliação às investigações que incomodam? O Ministério Público cometeu erros nestes 25 anos. Todos cometem erros. Mas a PEC 37 é feita para punir os acertos do Ministério Público. O Ministério Público é pago para defender interesses públicos que historicamente serviram a uma minoria. Contrariar esses interesses é fazer inimigos, por assim dizer. Quem acusa não agrada aos réus ou potenciais réus. O que me intriga é o Brasil querer ser comparado a Uganda e Indonésia. Se todos buscamos inspiração no direito constitucional alemão, escrevemos centenas de teses imitando os alemães e espanhóis, por que é que na investigação criminal queremos imitar o país de Idi Amin Dada [ex-ditador de Uganda]?
O que diz a PEC 37
A PEC define como competência "privativa" da polícia as investigações criminais ao acrescentar um parágrafo ao artigo 144 da Constituição. O texto passaria a ter a seguinte redação: "A apuração das infrações penais (...) incumbe privativamente às polícias federal e civis dos estados e do Distrito Federal."
As propostas de emenda à Constituição, como a PEC 37, tem um regime diferenciado de votação e, para serem aprovadas, exigem quórum mínimo de 3/5 de votos favoráveis do total de membros da Casa (308 votos na Câmara e 49 no Senado) e apreciação em dois turnos tanto na Câmara quanto no Senado.
O STF utilizou extensivamente as investigações que o MP fez do escândalo do mensalão e acabou condenando 25 pessoas. Com a aprovação da PEC, casos de sucesso como esses serão raros? Podem acabar? O mensalão é uma pedra no sapato dos defensores da PEC 37. Se não fosse o Ministério Público, processos dessa envergadura não teriam chegado a esse patamar. Historicamente, pode-se dizer que la ley es como la serpiente, solo pica a los descalzos [a lei é como a serpente, só pica os descalços]. Os poderosos sempre se livram dos rigores da lei penal, porque usam “botas”. A PEC 37 apenas alonga o cano das botas dos poderosos. Mexer com a estrutura das instituições é algo que faz que você pague por esse acerto depois. Toda vez que o MP acerta, ele cria um déficit de simpatia. É inexorável que o Ministério Público vá fazer inimigos, porque nosso histórico é de que não vai dar em nada.
O MP tem dado preferência às investigações de algum tipo de crime específico? As pessoas dizem que o Ministério Público escolhe o que investigar. Isso é verdade na medida em que ele tem como missão defender os interesses coletivos. Veja os crimes contra a administração pública: quer algo mais nefasto do que a corrupção? Proibir o MP de investigar crimes contra a administração pública é acabar com o MP, torná-lo um órgão burocrático. É evidente que, potencialmente, o Ministério Público deve tutelar os interesses coletivos. Não vamos querer o MP priorizando a investigação de crimes de índole individual.
Defensores da PEC 37 alegam que a Constituição não é clara na definição dos poderes de investigação do MP. Existe, no caso da PEC, uma tendência ou cultura de se valer de termos vagos para se tomar decisões de conveniência? Os que dizem que a Constituição não permite ao MP investigar estão em contradição, pela simples razão de que, se assim fosse, não haveria a necessidade da PEC 37. No mais, sempre é perigoso aplicar um drible hermenêutico nos dispositivos “incômodos” da Constituição.
As polícias, principalmente as estaduais, penam com falta de recursos. Mas o MP também têm milhares de investigações atrasadas ou paralisadas. Como lidar com o cenário de as duas instituições terem problemas básicos? Veja como o problema é estrutural. E por que isso se resolveria com a exclusividade da investigação policial? Seguramente 90% dos crimes de furto, roubo e estelionato só funcionam porque há flagrante. Onde não tem auto de prisão em flagrante não se investiga porque a polícia não tem estrutura. Não somos nenhum modelo de combate à impunidade e à corrupção no mundo. Temos de melhorar. Não podemos piorar.
Nenhum governo quis viabilizar o controle externo da polícia. Por que ninguém se propôs a fazer isso? O problema no Brasil é histórico. A nossa sociedade é patrimonialista. Historicamente o direito penal tem servido para condenar os pobres. Há uma nítida relação entre a investigação do Ministério Público e o risco que os poderosos sofrem. Não há uma conspiração, mas há um certo arranjo, uma confluência de interesses para que o MP seja retirado da investigação.FONTE:VEJA