A semana passada recebi um pedido de liminar contra um grupo de trabalhadores sem-terra que ocuparam um imóvel rural em Conceição do Coité. O advogado e os proprietários, no papel deles, queriam urgência na apreciação do pedido.
Antes disso, resolvi visitar o acampamento e conversar com os trabalhadores e conhecer o imóvel ocupado, designando para realizar a visita. Despachei neste sentido nos autos e no mesmo despacho observei a complexidade do caso, o cuidado que o judiciário deveria se cercar, a responsabilidade do Poder Executivo na implementação da reforma agrária, bem como determinei que fossem convidados para a visita as autoridades locais e mais a superintendência do Incra na Bahia, um representante da Casa Militar do governo da Bahia e do comando geral da polícia.
(Estiveram presentes o Sr. Ciro Salomão Almeida Cedraz, Ouvidor Agrário Regional do Incra; o Cap PM Marcos Vinícius Vergne de Carvalho, coordenador de mediação de conflitos; Cap PM Gabriel de Jesus Penna, da Casa Militar do Governo da Bahia; Ten PM Diego Santos, cmdte da 4ª Cia Pm Coité; Francisco de Assis Alves dos Santos, prefeito de Coité; Ismael Pereira, prefeito de Valente; Adalberto Neres Pinto Gordiano, presidente da Câmara de Vereadores de Coité; Nilson Carneiro, representante da Igreja Católica de Coité; Ivaldo Araújo e Rene do Sindicato, vereadores de Coité, dentre outros).
Senti um certo alívio quando os oficiais de justiça que procederam a intimação das lideranças no acampamento me relataram que foram recebidos com hinos em defesa da reforma agrária, que os acampados ficaram entusiasmados com a possibilidade de conversar pessoalmente com o Juiz de Direito e, sobretudo, quando os oficiais de justiça me relataram que viu uma bandeira do MST tremulando na entrada do acampamento. O alívio foi por saber que seria bem recebido pelos trabalhadores e suas lideranças, por saber que iria dialogar como um movimento organizado e com lideranças bem formadas politicamente e com uma visão realista da dificuldade de avanço da reforma agrária neste país.
Como imaginado, fomos bem recebidos pelos trabalhadores acampados, ouvimos suas músicas com paciência e nos pediram desculpas pela falta de tempo na preparação de uma “mística” para nos receber. De início, informei o caráter da visita, que tinha profundo respeito por eles e pelo MST e que, apesar disso, estava ali como Juiz de Direito que tinha a autoridade para decidir ações judiciais. Em seguida, foi dada a oportunidade para que todas as lideranças e visitantes se manifestassem. Ouvi muitos elogios pela iniciativa e o teor das falas foi sempre no sentido da importância de se buscar uma solução negociada pelo conflito.
Em seguida, o ouvidor do Incra, muito lealmente, observou que o mesmo imóvel já tinha sido objeto de vistoria há alguns anos e descartado para fins de desapropriação, bem como a existência de entraves legais e burocráticos para realização de nova vistoria enquanto persistisse o acampamento no imóvel. Concluindo, o ouvidor do Incra propôs a realização de uma reunião em Salvador com representantes do Incra, dos proprietários e da Coordenação de Desenvolvimento Agrário (CDA), do governo da Bahia, cuja pauta deveria envolver aquele e outros imóveis na mesma região que pudessem ser desapropriados. Em seguida, deixou claro que, para tanto, o imóvel deveria ser desocupado antes da reunião.
De início, os acampados não concordaram com a proposta de desocupação, mas foram convencidos que o mais importante no momento era manter aberto o diálogo e valorizar a oportunidade de estabelecer uma agenda e uma pauta de discussão com o Incra sobre a reforma agrária na região. Como condição, pediram um prazo até o dia 18 de fevereiro para desocuparem a área e que a reunião em Salvador fosse agendada para logo em seguida à desocupação, o que foi prontamente aceito. Para celebrar o acordo, mandei lavrar uma ata, que foi assinada por todos, fazendo constar que o processo judicial estava suspenso até o cumprimento do acordo.
Por fim, tomei a palavra para ressaltar a importância da reunião e dessa nova forma de encaminhamento da discussão sobre uma ocupação promovida pelo MST, ou seja, visitar o local e dialogar com as partes antes mesmo de apreciar o pedido de liminar. Finalmente, observei aos acampados que a luta pela reforma agrária é árdua e que o movimento deve ter a capacidade de avaliar e recuar quando for necessário para acumular forças e continuar lutando.
Este diálogo durou mais de 4 horas. Voltei para casa com fome e cansado, mas com a sensação de dever de magistrado cumprido, ou seja, de sair do meu gabinete para vivenciar de perto um conflito e de saber que a Constituição garante o direito de propriedade, mas que também lhe submete a uma função social (artigo 5º, XXII e XXIII) e que o objetivo da República é construir uma sociedade livre, justa e soberana, fundada na cidadania e dignidade da pessoa humana, conforme escrito nos artigos 1º e 3º da Constituição.
Gerivaldo Neiva(Foto/texto:Juiz de Direito (Ba), membro da coordenação estadual (Ba) da Associação Juízes para a Democracia (AJD), Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition e membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB)