Nesta semana, a Editora Abril, que publica VEJA, foi alvo de duas liminares que cerceiam a liberdade de imprensa. Ambas foram expedidas pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, atendendo a demandas de uma mesma fonte: o advogado carioca João Tancredo e uma entidade que ele preside, o Instituto Defensores de Direitos Humanos (DDH). Uma ação foi motivada por reportagem de 8 de março de 2014 de VEJA.com, também comentada no blog do jornalista Reinaldo Azevedo, que falava do destino do dinheiro arrecadado em dois eventos promovidos pelo DDH em torno do desaparecimento do pedreiro Amarildo Dias de Souza. A segunda tem por alvo uma nota de 8 de abril da coluna Radar on-line, que informou que a família de Claudia Silva Ferreira, morta no Rio de Janeiro ao ser arrastada por uma viatura policial, desautorizou o advogado a representá-la na Justiça, depois de ele alardear que o faria. João Tancredo e o DDH foram além do pedido de indenização – que é um direito sagrado de quem se sente ofendido por reportagens publicadas em veículos de comunicação. Requisitaram, ainda, que a reportagem do site, o comentário de Reinaldo Azevedo e a nota do Radar on-line fossem tiradas do ar e que VEJA seja proibida, na internet ou no papel, "de autorizar ou promover quaisquer outras inclusões de igual teor". As duas sentenças liminares acolheram o primeiro pedido, que já representa um golpe na liberdade de imprensa. Uma delas acolheu também o segundo, o que significa instituir a censura prévia, prática explicitamente vetada pela Constituição. A Editora Abril vai recorrer de ambas.
Em seu despacho na ação sobre o caso Amarildo, o juiz Gustavo Henrique Nascimento Silva, muito embora tenha decidido bloquear o acesso à reportagem de VEJA.com e ao post de seu colunista, reconheceu um excesso no propósito de obrigar o site a se abster de abordagens futuras do assunto. Segundo o magistrado, isso “equivaleria a uma espécie de censura prévia, o que não se pode admitir”. Não se pode dizer o mesmo da decisão da juíza Andrea de Almeida Quintela da Silva, que deu provimento integral ao pedido do advogado João Tancredo relacionado à nota do Radar on-line.
Decisões como essas não são, infelizmente, isoladas no Brasil. O último relatório da Associação Nacional dos Jornais (ANJ) identificou treze casos de censura judicial entre agosto de 2012 e agosto de 2013. Desde então, a entidade detectou pelo menos outros dois episódios. É muito provável que o número real seja ainda maior nos inúmeros juízos de primeira instância. "Hoje, há o risco no Brasil de instituir-se uma espécie de censura togada", diz o jurista Manuel Alceu Affonso Ferreira.
A boa notícia é que essas liminares e sentenças se chocam com a jurisprudência dos tribunais superiores, em especial do Supremo Tribunal Federal (STF), a respeito da centralidade da liberdade de expressão num regime democrático.
Em 2009, no julgamento que sepultou a Lei de Imprensa instituída pela ditadura militar, o STF assegurou o amplo exercício da liberdade de imprensa. O acórdão é lapidar: "Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário". Diz outro trecho: "O exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente". E ainda: "Verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão".
Desde então, essa orientação vem sendo reconfirmada em várias oportunidades. Na semana passada, a Segunda Turma do STF reverteu uma decisão que obrigava um site de notícias a pagar mais de 100.000 reais a Leonardo Cantidiano, ex-presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). "A crítica exercida pelo recorrente não transbordou dos limites constitucionais da liberdade de imprensa, ainda que elaborada em tom mordaz ou irônico", afirmou o relator do processo, o ministro Ricardo Lewandowski, em seu parecer elaborado para o Recurso Extraordinário 652.330. Ele foi acompanhado pelos colegas da turma.
Em março de 2011, a corte também negou um pedido do desembargador catarinense Francisco José Rodrigues de Oliveira contra o colunista Cláudio Humberto. O juiz exigia indenização por danos morais. No Agravo de Instrumento 705.630, o relator Celso de Mello argumentou: "O Estado – inclusive o Judiciário – não dispõe de poder algum sobre a palavra, sobre as idéias e sobre as convicções manifestadas pelos profissionais dos meios de comunicação social."
No Recurso Especial 801.109 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cujo acórdão foi publicado há um ano, a corte deu razão à Editora Abril contra o juiz Asdrúbal Cruxên, incomodado com reportagens publicadas em VEJA sobre acusações graves contra o magistrado: "Não caracteriza hipótese de responsabilidade civil a publicação de matéria jornalística que narre fatos verídicos ou verossímeis, embora eivados de opiniões severas, irônicas ou impiedosas", diz o acórdão da decisão.
Especificamente sobre o uso de liminares para constranger a imprensa, o ministro do STF Marco Aurélio Mello diz que elas deveriam ser reservadas a situações claramente excepcionais, que possam resultar em prejuízos que nenhum remédio seria capaz de reparar. "Mas não é isso que se tem visto", diz Marco Aurélio. "E isso fomenta uma atmosfera contrária à veiculação de ideias e de informações." Segundo o ministro, os valores contidos na Constituição têm uma hierarquia clara. "Se você fizer uma análise, vai ver que em primeiro lugar vem a liberdade de expressão", diz ele. "Tudo que diz respeito ao direito de privacidade está em plano secundário."