Uma das provas mais instigantes do Enem 2014 foi a de língua portuguesa, da área de Códigos, Linguagens e suas Tecnologias. O Exame Nacional do Ensino Médio já vinha acenando uma tendência que foi plenamente confirmada: o que será avaliado é se o aluno tem competência para ler, interpretar e relacionar textos.
O Enem reforça assim alguns sinais enviados à escola. Primeiro: é o fim do estudo focado na gramática normativa. Segundo: é o fim do estudo da literatura pelas listas de características de autores e de estilos demarcados por datas. Já não é tão decisivo saber se uma oração é “subordinada adjetiva restritiva”. Nem decorar um inventário de itens para ver se um soneto é ou não parnasiano. Importa saber produzir e entender mensagens, decifrar os possíveis significados que as palavras revelam. O recado para a escola é: ensine a ler. Mas não no sentido de decodificar signos linguísticos.
Numa de suas músicas, Chico Buarque imagina que, numa cidade submersa há milênios, os escafandristas chegam para explorar uma casa: “seu quarto, suas coisas, sua alma”. Chico diz que os sábios tentarão – em vão – decifrar o eco de antigas palavras: “fragmentos de cartas, poemas, mentiras, retratos, vestígios de estranha civilização”.
É uma das mais férteis metáforas para falar de leitura, essa espécie de viagem para outras culturas, outros textos, inusitados contextos. Ler é, como tentam os sábios da canção de Chico, arriscar-se a decifrar essa mensagem reservada para nós, tecida entre as linhas. Como diz Drummond de Andrade: chegar mais perto e contemplar as palavras, pois “cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta: (...) Trouxeste a chave?”.
É esse o intuito das questões que trazem, na prova deste ano, Dalton Trevisan, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Veríssimo, Manuel Bandeira, Gregório de Matos e outros. Mas os textos literários não aparecem como produtos acabados e inertes, como nas aulas de literatura clássica. Relacionam-se com quadros de Picasso, cartuns, anúncios publicitários. Ora, assim é a linguagem: dinâmica, polifônica, dada às interpretações e releituras. Essa capacidade de navegar pela intertextualidade é a proposta para avaliar o estudante.
O Enem deste ano é uma prova à procura de um estudante que sabe ler. Mas não a leitura da internet, da superficialidade e da rapidez.
A prova mede outra leitura: a que precisa de concentração, sensibilidade e razão aguçadas, que exige tempo, desprendimento, generosidade. Justamente como diz a música de Chico: “Não se afobe não, que nada é pra já”. É uma leitura que pode não ter necessariamente “finalidade” nem “para que serve”. Existe para quem ousa desvendar sentidos e, a partir deles, refletir, espelhar-se, reinventar-se. Porque, como escreveu Umberto Eco, “o autor e o leitor se definem um ao outro durante e ao fim da leitura; eles se constroem mutuamente”.
É todo um saber que não nasce com as pessoas, e para o qual precisamos ser convidados e seduzidos. Um saber que será absolutamente decisivo ao longo da vida, como universitário, profissional, pessoa, cidadão. É um estilo de leitura, no entanto, bastante distante do jovem de hoje, para o qual a escola e a família ainda dedicam poucos tempos e espaços.Fonte:G1(Andrea Ramal)