Francisco estava no sofá assistindo televisão e aproveitando seu primeiro dia de férias quando a polícia quebrou o portão e invadiu sua casa gritando, com armas em punho. Apesar de não saber do que se tratava, o coletor de lixo não reagiu nem para dizer que era trabalhador de carteira assinada.
Por experiência anterior (ele já havia passado seis meses em um Centro de Detenção Provisória e depois inocentado), sabia que seria pior tentar argumentar naquele momento. A filha de 15 anos estava no banho, a mulher e a filha mais nova, de cinco anos, não estavam na casa, localizada no litoral sul de São Paulo.
Foi levado algemado para a delegacia do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), na capital. Só então ficou sabendo que a vítima de um sequestro, um homem que pagara R$ 400 mil de resgate, havia supostamente reconhecido sua tatuagem em um álbum de pessoas com passagem pelo sistema carcerário, apresentado pela polícia.
A vítima teria dito que o sequestrador tinha uma tatuagem no braço, e escolhido Francisco no álbum com fotos de ex-detentos que batiam com a descrição de tipo físico e da tatuagem mostrada pela polícia. Mesmo com provas e testemunhas de que estava trabalhando nos dias em que a vítima afirmou ter ficado 24 horas sob olhares do algoz, em outra cidade, Francisco ficou preso por dois meses no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, em São Paulo, em uma cela "pequenininha assim", com mais de 50 pessoas, "às vezes mais, às vezes menos", esperando que o delegado chamasse a vítima para um novo reconhecimento.
"O delegado dizia que não estava encontrando o homem" conta a mulher de Francisco, que acabou ela mesma descobrindo o endereço e passando ao delegado. "Só aí que ele ficou sem graça e chamou pra reconhecer" lembra a mulher. Durante os dois meses em que esteve no CDP, Francisco não viu as filhas, porque não queria que as meninas passassem pela humilhação da revista vexatória. O que mais o marcou foram as revistas com cães dentro das celas, quando eram obrigados a se despir e se encolher "com os cães fungando no cangote".
Quando saiu, perdeu o emprego. "Me disseram que foi porque a empresa foi vendida e tiveram que demitir algumas pessoas", explica. Diz que a filha pequena chora quando vê passar um carro de polícia na rua –tem medo que levem o pai mais uma vez. Sua mulher tem trabalhado dobrado pra sustentar a casa enquanto ele procura outro serviço. Mas, com seu nome ainda não liberado do processo, "tá bem difícil".
O caso de Francisco dá feição humana aos números escandalosos do encarceramento provisório no Brasil, denunciados por vários órgãos de defesa de direitos humanos e, mais recentemente, pelo Relatório Mundial 2015, da Human Rights Watch, publicado em janeiro, que analisa anualmente avanços e retrocessos na proteção dos direitos humanos em mais de 90 países.
Sobre o Brasil, destaca esse gargalo do sistema penitenciário entre denúncias de tortura, tratamento cruel, desumano ou degradante e falta de infraestrutura dos presídios. Em setembro de 2014, o Grupo de Trabalho da ONU sobre Prisão Arbitrária também apresentou um relatório apontando a superlotação endêmica, o acesso à Justiça severamente deficiente e o encarceramento como regra e não exceção, mesmo em casos de delitos leves e sem violência.
O "Mapa das Prisões" da organização de direitos humanos Conectas mostra um crescimento de 317,9% na taxa de encarceramento (número de presos por cada grupo de 100 mil habitantes) do país entre 1992 e 2013, passando de 74 para 300,96, enquanto a Rússia, por exemplo, registrou redução de cerca de 4% no mesmo período.
Segundo os últimos dados disponibilizados pelo InfoPen do Ministério da Justiça de junho de 2013, o Brasil contava com mais de 581 mil pessoas privadas de liberdade, 41% delas em prisão provisória. É a quarta maior população carcerária do mundo, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. O déficit de vagas supera 230 mil.
No Estado do Amazonas, mais de 70% dos encarcerados são presos provisórios e, em São Paulo, 36% do total, segundo os últimos dados do Ministério da Justiça. Mas, de acordo com Bruno Shimizu, defensor público do Núcleo de Situação Carcerária de São Paulo, o número de provisórios é ainda maior, já que esta conta diz respeito apenas aos presos sem julgamento, não incluindo os que não tiveram ainda o processo concluído: "Os dados apontados pelo Depen não mostram um número real, porque quando a pessoa tem uma sentença de 1o grau, ela continua sendo inocente até o fim do processo".
Uma pesquisa feita em parceria entre Depen (Departamento Penitenciário Nacional) e Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) apontou que, em 37,2% dos casos em que há aplicação de prisão provisória, os réus não são condenados à prisão ao final do processo ou recebem penas menores que seu período de encarceramento inicial.
Pela ordem pública
"O Brasil é conhecido internacionalmente como um país que extrapola qualquer limite no número de prisões preventivas. É uma prisão que, pela Constituição, é excepcionalíssima, e na prática ela é a regra. No fim das contas, serve como uma forma antecipada de pena e como forma de contenção social mesmo", diz o defensor público coordenador do Núcleo de Situação Carcerária, Patrick Cacicedo.
Ele explica que a prisão preventiva ou cautelar, segundo a lei, serve para garantir o andamento regular do processo. "Pela lei e pela nossa Constituição, que diz que 'ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória', ela só deve ser utilizada quando se tiver elementos concretos que mostrem que aquela pessoa vai atrapalhar o andamento do processo de alguma maneira, fugir, em casos de crimes contra a ordem econômica do país ou para a garantia da ordem pública. E é aí que se prende mais. Porque ninguém sabe o que é 'ordem pública'. É um termo vago. Quando não se tem um motivo concreto –e quase nunca tem–, ela faz valer a grande maioria das prisões preventivas", explica.
Muitas vezes, como mostra a pesquisa Tecer Justiça – Presas e presos provisórios da cidade de São Paulo, feita pelo ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania) e Pastoral Carcerária, o primeiro contato entre o defensor e o acusado coincide com a realização da audiência de instrução, debates e julgamento, que pode vir a acontecer meses após a prisão.Fonte:Uol