Em março deste ano, cinco meses antes da imagem do corpo do menino Aylan Kurdi, de três anos, estirado nas areias da praia de Bodrum dar um tapa na cara da humanidade, o Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados, o português Antônio Guterres, classificou a guerra civil da Síria como "a pior crise humanitária da nossa era" - ou pelo menos a mais grave pós-Segunda Guerra. Em quatro anos e meio, o conflito insano que destruiu o país árabe deixou mais de 250.000 mortos e espalhou 4 milhões de refugiados pelo mundo - 25% deles menores de idade.
Do grupo que arriscou cruzar o Atlântico rumo às Américas, a maioria desembarcou no Aeroporto Internacional de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo. No Brasil, o primeiro destino foi bater à porta da mesquita de Guarulhos, a 10 quilômetros de onde aterrissaram, em busca de abrigo.
Foi esse o caminho percorrido no ano passado por Marah Khamis, de 23 anos, ao lado do marido, dos pais e de três irmãs, que deixaram Damasco depois que um familiar desenvolveu um câncer em consequência de uma bomba química. Os bens foram convertidos em passagens aéreas para o Brasil. Desembarcaram com poucas malas e economias suficientes para algumas semanas. O único endereço em mente era a mesquita de Guarulhos, onde foram acolhidos e se juntaram a cerca de 150 conterrâneos que seguiram o mesmo itinerário - hoje, o país contabiliza 2.077 refugiados sírios, segundo a ONU.
Uma tragédia também foi o motivo que trouxe ao Brasil a síria Fateh Saymeh, de 29 anos, o marido, Mohamed Saymeh, e as duas filhas de cinco anos. "Minha casa explodiu na minha frente", lembra Fateh, de fala calma e serena ante as memórias da guerra. A indignação fica por conta do marido, que assumiu uma dura rotina para sustentar a família. Saymeh é funcionário de um restaurante das 9h às 18h, o que lhe rende 1.000 reais por mês - dinheiro que tem como destino o aluguel da casa. Para complementar a renda, ele trabalha na Feira da Madrugada, no Brás. Embora ainda não consiga se comunicar em português, ele já aprendeu a pronunciar as únicas palavras que definem sua realidade - e a de milhares de brasileiros: "Muito cansado".
Neste ano, por causa da superlotação, a mesquita de Guarulhos deixou de abrigar os refugiados, que passaram a ser encaminhados para duas ONGs, Livro Aberto e Oasis, criadas pelo xeique Mohamed Al Bukai. As mesquitas do Brás, no Centro de São Paulo, e de Santo Amaro, na Zona Sul, mantêm projetos de ressocialização para os sírios, com cursos de português para iniciantes, distribuição de cestas básicas e encaminhamento para unidades públicas de saúde.
O amparo das comunidades árabes, contudo, é uma tentativa de suprir a falta de assistência do governo brasileiro. De acordo com o Estatuto do Refugiado, promulgado em 1997, compete ao Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão ligado ao Ministério da Justiça, "orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados".
"O governo federal não só é responsável pelo aspecto jurídico de analisar os casos de refúgio e reconhecer os refugiados, como também tem a obrigação perante organizações internacionais de dar suporte de infraestrutura, como moradia, emprego e formas de integração", afirma Manuel Nabais da Furriela, presidente da comissão de Refugiados da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP).
Emprego - A maioria dos sírios em solo paulista tem uma queixa comum: apesar de possuírem diploma de nível superior, não conseguem trabalho em suas profissões, especialmente pela dificuldade em validar seus diplomas. É o caso de Talal Al-Tinawi, de 42 anos, que chegou ao Brasil há dois anos com a mulher, Ghazal, e dois filhos. Formado em engenharia mecânica, ele até conseguiu emprego em sua profissão graças à ajuda de uma voluntária, mas o trabalho durou pouco porque seu diploma jamais foi validado. A saída foi se virar: Talal Al-Tinawi montou um serviço delivery de comida árabe numa das galerias do comércio efervecente do bairro do Brás.
Al-Tinawi também contou com a ajuda do sírio Amer Mesarani, que vive no Brasil há duas décadas. Masarani cedeu sua casa à família, ensinou a língua portuguesa e matriculou as crianças em uma escola pública. "Do governo, só recebi os documentos", reclama Al-Tinawi. Voltar para a Síria faz parte dos planos? Ele baixa os olhos e a mente é invadida pelas lembranças dos três meses que ficou preso, confundido com um procurado pelo exército de Bashar Assad. "Não quero começar tudo do zero mais uma vez", diz.
Sala de aula - "Muito difícil". Assim o marceneiro Sami Sheji Al Najjar, de 52 anos, resume a angústia comum dos alunos enfileirados, atentos às aulas de alfabetização na mesquita de Santo Amaro. Nas últimas semanas, Najjar aprendeu a formar as primeiras frases em português: "Eu sou da Síria. Agora moro no Brasil". A professora brasileira, de religião muçulmana, usa um lenço cobrindo a cabeça e abre mão de qualquer tipo de maquiagem. Na última quarta-feira, ela pedia que a classe - com alunos de todas as idades - repetisse fonemas e algumas formações silábicas. De repente, o silêncio tomou conta da sala: era o "nh".
"É um som muito típico que eles não conhecem. Assim como as letras E, G, O e P, que não existem na língua árabe", afirma a professora voluntária Laisa Vasconcellos.
Como ela não fala árabe, a tradução fica a cargo do próprio xeique Mohamed Al Bukai. "As aulas são o princípio base para que eles consigam viver no Brasil. Só sobreviverão se arrumarem trabalho e só arrumarão trabalho se falarem português", diz.
Futuro - Meses depois de buscar refúgio na mesquita de Guarulhos, a família de Marah Khamis mudou-se para uma casa na vizinhança. A moradia foi cedida ao pai dela por um amigo para quem ele trabalhou como pedreiro. "Minhas irmãs estão na escola, estão se socializando. Fizeram amigos e sabem falar português melhor do que eu", diz Marah, hoje com um sorriso marcante no rosto. Mais de um ano depois do embarque incerto para a América, ela está grávida - e feliz em terra firme. Em janeiro, o menino Amer nascerá bem longe da guerra.Fonte:Veja