Na década de 1940, a cidade possuia 5 praças, mas, só a principal - Manuel Victorino, depois Luiz Nogueira - era chamada assim. As demais eram Largos - da Usina, da Estação, da Federação, da Matança, da Serisicultura.
A igreja da praça provocava um fascínio enorme em nós, meninos. Fascínio e medo. A gente tinha medo da igreja e do cemitério. Quando alguém falava: "Você tem coragem de entrar na igreja sozinho de noite?" A gente respondia - Deus me livre, tenho medo. "E no cemitério do padre você iria? - Pior ainda, tenho medo de almas.
Naquela época, menino tinha medo de imagens de santos no escuro e de almas. Daí que a gente adorava muito a igreja da praça, de dia, por fora; e por dentro, de noite, só quando tinha missa e/ou casamento, com o templo todo aceso e o coral cantando no coro. Era lindo.
Agora, pra ver a imagem do Senhor Morto que havia num nicho à direita do altar de São Joaquim, só acompanhado. A gente ficava com medo, contrito, e algum adulto tinha que ir para mostrar, explicar, levantar uma cortinazinha que havia e lá estava o santo deitado. Esta imagem só ia às ruas nas sextas-feiras santas. O Jesus judeu, real, não tinha essa cara bonita de Jesus da igreja, com cabelos longos.
O padre de minha época de menino se chamava Demócrito Mendes de Barros. Mulato alto, magro, fumante e tomador de pinga. Pra disfarçar tomava uma branquinha no Bar Itaúna de Sêo Veloso numa xícara. Ele e Paulino Biêta, pai de Popó.
O padre era uma figura carismática. Professor, político, escritor, com formação religiosa pautada na igreja tradicionalista do cardeal dom Álvaro Augusto da Silva, então primaz do Brasil. Seguia essa linha. Nada de mulheres na igreja sem véu cobrindo a cabeça. Nem violão, viola ou atabaque. Só órgão. Cantochão.
Todo mundo chamava-o de padre Demócrito. Havia, ainda, a irmã do padre, Zilda Barros, a qual tinha uma escola de datilografia. Quando menino-grande aprendi a teclar na escola da irmã do padre. Ela dizia ao lado da gente: - Na mão esquerda o dedo mindinho tem que teclar o a, depois segue os dedos 'seu vizinho' no s, 'maior de todos' d, e 'indicador' no f e g; do outro lado, com a mão direita g, h, j, k, l.
- Não tô acertando professora, reclamava.
- Repita 20 vezes o exercício, respondia.
Era um sacrificio. Graças a esses ensinamentos em minha vida profissional de jornalista teclei com habilidade 30 anos de máquinhas datilográficas e hoje sigo no computador.
Outro personagem era o motorista do padre que a gente chamava Antonio do Padre. Dirigia um jeep Willys para atender o pároco. As más linguas diziam que Antonio era filho do padre. Que parecia, parecia, mas, são boatos do povo. Dizia-se, também, as tais más línguas, que o padre tinha fiéis fêmeas mais próximas dele. Digamos assim, enamoradas. Puras más línguas. Demócrito era casto.
Quando virei menino grande entrei no Ginásio aí conheci melhor o padre porque ele ensinava latim. Demócrito não falava latim fluente, mas sabia muitas frases decoradas e 'quebrava um galho' ensinando-nos declinações. Latim já era uma língua morta, mas, havia essa disciplina no ginásio e as missas eram oficiadas - salvo o sermão - em latim. Os fiéis não entendiam nada do que o padre falava em latim, mas, fazia parte do rito. A fé, remove montanhas.
Faço um breve parêntesis para explicar o que era menino grande. Na época, os termos usados eram bebê/criança para pessoas até 3 anos; dos 3 aos 7 era menino-pequeno (usava-se calças curtas); e dos 7 aos 12 menino-grande (usava-se calças compridas). A partir dos 12 aos 21 era rapaz (época de comprar um terno). Depois, homem. Mulher a mesma coisa: menina, mocinha (menina pequena) e moça (menina grande - usava sapato de salto). Depois, mulher. Não havia esse negócio de pré-adolescente, adolescente e jovem.
Voltando ao padre, havia ainda Sêo Torquatro sacristão, um vizinho nosso da Praça da Usina; e Zé Sacristão, um camarada baixinho, rezador ao extremo, que zelava do templo e ajudava nas missas. Sêo Lúcio chegou depois e integrava - ainda jovem - essa confraria.
A Igreja marcava as horas na cidade. Meu pai tinha uma tipografia e livraria na praça e não havia relógio de ponto. Nada. Os operários - cinco pessoas - chegam às 8 e largavam o primeiro turno do trabalho quando os sinos da igreja marcavam meio dia com 12 badaladas. O comércio todo em Serrinha se regulava pelas batidas do sino da igreja, ao meio dia e às 6 da tarde (ninguém falava 18h). Era comovente na hora do 'angelus' porque o serviço de alto falante entoava a Ave Maria de Bach/Gunoud.
Havia três festas religiosas que a gente não perdia. Duas delas eram realizadas durante a semana santa - a Procissão do Fogaréu e a Sexta da Paixão; e a terceira a Festa de Sant'Anna, novenário, nove dias de missas e badalações.
Meu pai não era católico mas levava os filhos pra ver a Procissão do Fogaréu, lá da casa de tia Pequena de Basílio, que morava num casarão onde hoje é o Hotel Dimantino. A procissão saia da matriz, seguia pela Rua Direita, depois descia até a esquina da casa de Sêo Brizolara, e tomava rumo direto até a casa de dona Marieta na rua da Estação. Dai subia de volta à praça e retornava à igreja.
Em cada lugar desses tinha uma parada para o cântico do "Senhor Deus Misericórdia". Era a parte mais bonita. A matraca prá-prá-prá-prá-prá anunciava que os fiéis tinha que se ajoelhar e o padre puxava o "pequei Senhor...Misericórdia". A última parada era em frente a casa de Tia Pequena, senhora solteirona, devota até a alma.
Nessa época, só acompanhava a procissão homens, e as tochas eram feitas pelas própias pessoas. Como meu pai tinha uma papelaria, eu fazia tochas pra vender aos tabaréus e aos citadinos. Armava uma banquinha na praça. Nem me lembro mais o preço. Era a coisa mais fácil de fazer: quatro abas de papéis colados e um fundo de papelão com furo para introduzior a vela. A gente também brincava nas procissões apagando as velas dos fiéis quando eles se ajoelhavam para orar e depois saíamos correndo.
Depois, a Prefeitura resolveu produzir as tochas com um marketing fajuto e acabou essa tradição, infelizmente. Onde a Prefeitura entra vira política e adeus tradição.
A outra festa que a gente não perdia era a procissão do Senhor Morto na sexta santa. Nesse dia era proibido ingerir bebidas alcoólicas (salvo o vinho), dançar, cantar, cortar cabelo, fornicar e assim por diante. Fechava-se o balaio na quinta e só abria no sábado de Aleluia. Quem xingasse a mãe neste dia virava lobisomem. Comer carne era ir para a terra do demo, amosdeu.
A procissão era realizada na praça e a parte mais emocionante era quando dona Valda do Cartório fazia o papel de Verônica e entoava um cântico lamurioso desenrolando uma imagem da face de Jesus ensanguentada. Ela subia numa cadeira e a população ficava de queixo caido.
A terceira festa era a mais glamurosa, a de Sant'Anna. Essa sim, tinha foguetes, cachaça, cerveja, bolos, quermeses, música e missas toda noite durante 9 dias. O novenário era dedicado cada noite a familias católicas e categorias/ou instituições. Noite da familia tal mais dos comerciantes e caixeiros; noite da familia y e mais ferroviários e professoras.
Havia, após a missa a festa de largo. Existia entre a matriz e o coreto um cruzeiro e as barracas eram armadas em volta dessa área, especialmente uma maior onde Nelinho magarefe comandava os leilões. No Coreto apresentava-se a Filarmônica 30 de Junho.
Os leilões a gente ficava no gargarejo vendo e ouvindo as tiradas de Nelinho: - Agora vai ser leiloado este capão (mostrava o galo ao público) para ajudar Senhora Sant'Anna e a nosso padre construir a nova igreja, valendo 2 cruzeiros.
Aí alguém gritva: - Dou 3 cruzeiros . Nelinho respondia Manelzinho da oficina ofereceu 3 cuzeiros, quem dá mais. Sêo Zé Faustino da loja ofereceu 4 cruzeiros. Seguia nessa toada até o arremate: - Não tendo ninguém que pague mais pelo capão ele vai para Manelzinho que garantiu 5 cruzeiros. Maravilha.
Recentemente, estive participando de um casamento na Matriz de Sant'Anna e passaram por minha cabeça essas lembranças. Daí que estou contando pra vocês. Num momento desses, não poderia deixar de ver o Jesus conduzindo a cruz no ombro no mesmo altar da época em que eu era menino.Texto:Jornalista Tasso Franco(Bahia já)