Coube ao deputado Bruno Araújo, tucano de Pernambuco, o 342º voto, que aprovou a abertura do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff na histórica noite do domingo 17 de abril de 2016. Antes que Araújo chegasse ao microfone, os deputados começaram a cantar: "Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor". Com lágrimas nos olhos, ele disse: "Quanta honra o destino me reservou de poder da minha voz sair o grito de esperança de milhões de brasileiros". Depois de falar de seu estado, anunciou: "Por isso eu digo ao Brasil sim para o futuro".
Passavam sete minutos das 11 horas da noite. O plenário da Câmara explodiu em comemoração, deputados cantavam. Pelas ruas das principais capitais brasileiras, ouviram-se fogos de artifício e buzinaços. Na Avenida Paulista, no coração de São Paulo, onde cerca de 250 000 pessoas estavam reunidas, houve festa. Na Avenida Atlântica, a multidão acompanhou a votação em três telões instalados na orla do Rio de Janeiro. Em Brasília, 79 000 pessoas posicionaram-se em frente ao Congresso, separadas pela polícia por uma barreira erguida para evitar pancadaria. A maioria, 53 000, defendia o impeachment. Agora, caberá ao Senado a decisão final. A votação na Câmara prosseguiu até quase meia-noite.
O placar final foi de 367 pelo impeachment e apenas 146 em favor de Dilma - sendo 137 votos contra, sete abstenções e duas ausências. Sobraram 25 votos para aprovar o impedimento. Uma vitória acachapante da oposição e do vice Michel Temer, que, antes do fim da votação, se deixou fotografar já sorridente.
As verdadeiras democracias são aquelas em que a lei não sucumbe aos interesses dos poderosos. Lula e Dilma Rousseff acreditavam que subverteriam essa lógica. Acreditavam que a imprensa livre e os órgãos de investigação jamais descobririam que eles se mantiveram no poder fraudando eleições, subornando políticos e corrompendo partidos por meio de uma gigantesca estrutura de corrupção montada dentro do aparelho estatal. Queriam vinte anos de poder ininterruptos. Tiveram treze e, agora, estão prestes a ser expulsos dele no embalo das maiores manifestações populares da história da democracia brasileira.
Duas décadas depois de votarem o impeachment de Fernando Collor de Mello, os deputados aceitaram a denúncia contra Dilma. Ainda há um rito a ser cumprido até o afastamento definitivo, mas a morte política já foi decretada. No domingo, o Brasil renunciou a Dilma, ao governo do PT e, espera-se, a um método criminoso de fazer política. Em reação, o PT já começou a articular uma proposta: antecipar as eleições presidenciais. A ideia é que Dilma renuncie para que, em outubro, junto com o pleito municipal, seja convocada uma nova eleição presidencial. É a forma petista de dar o troco a Michel Temer. Ele, que não passa de 2% nas pesquisas eleitorais e tem 58% da população contra sua ascensão ao poder, teria de disputar a eleição se quisesse passar a residir no Palácio da Alvorada.
A derrota do PT na Câmara, pelo placar folgado que teve, seria inimaginável até pouco tempo atrás. O partido e os aliados saíram das urnas, em 2014, com uma bancada de cerca de 380 deputados, número suficiente para ganhar qualquer votação. A esmagadora maioria das excelências evocou de tudo um pouco para justificar seu posicionamento, da "paz em Jerusalém" aos "corretores de seguro", passando pela "família", pelos "meus netos". Poucos falaram em "pedaladas fiscais", a razão formal do pedido de impeachment. Na prática, votaram contra Dilma pelo conjunto da obra: crime fiscal, recessão econômica e, claro, envolvimento no maior esquema de corrupção já investigado no Brasil.
A votação na Câmara durou quase dez horas. Com tremendo sangue-frio, o deputado Eduardo Cunha presidiu a sessão, ficando impassível diante dos que, postados ao microfone no centro do plenário, lhe dirigiam a palavra chamando-o de "corrupto", "ladrão" e "réu", pelo processo que responde no Supremo Tribunal Federal sob a acusação de embolsar 5 milhões de dólares de propina. Ouviu até um "Eduardo Cunha, você é um gângster". Continuou como se nada estivesse acontecendo.
Dilma só será afastada do cargo se o Senado concordar com os deputados e determinar a abertura do processo de impeachment. Esse juízo deve ser feito num prazo de vinte dias - primeiro, por uma comissão especial, que será comandada por peemedebistas e tucanos, e, depois, pelo plenário do Senado. O afastamento é considerado barbada. Já há folgada maioria na Casa. Aberto o processo de impedimento, Temer comandará o país provisoriamente até que os senadores, em 180 dias, decidam se a presidente perde de vez o mandato. Aliado de Lula, a quem credita o milagre de não ter sido cassado depois de ser alvo de denúncias de corrupção, o presidente do Senado, Renan Calheiros, foi aconselhado por colegas de partido a não se sentar em cima do caso, sob o risco de ser denunciado ao Conselho de Ética da Casa pela suspeita, investigada na Operação Lava-Jato, de que recebeu dinheiro sujo roubado da Petrobras.
Renan não tolera Temer, mas tem um instinto de sobrevivência aflorado, responde a nove inquéritos do petrolão no STF e sabe da conveniência de ficar ao lado de quem tem poder. Se não houver uma reviravolta, o Senado seguirá a Câmara e formalizará a percepção de que o governo Dilma acabou faz tempo. Um desfecho até certo ponto surpreendente, uma vez que a presidente já foi uma sumidade em popularidade, antes de ser a mais impopular da história.
A derrota sofrida pelo PT é, sem dúvida, a maior de sua história, como mostra o luto das 42 000 pessoas que se reuniram na noite de domingo no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, para protestar contra o impeachment. E a derrota do PT vem no bojo de uma crise duplamente devastadora: a ética e a ideológica. A face mais visível é a desfiguração ética do partido, o que levou as camadas dirigentes a ser capturadas pelo dragão da corrupção partidária e pessoal. Como guardião implacável da virtude alheia, o PT perdeu o rumo quando caiu a máscara de sua própria desvirtude. Tornou-se, então, incapaz de autocrítica. Jamais pediu desculpas. Do mensalão ao petrolão, desenhou-se uma linha reta e direta, sem escalas.
A outra crise, menos visível e talvez mais profunda ainda, é a devastação ideológica. A esquerda, e nisso a culpa não é exclusivamente do PT, não encontrou uma resposta para a sua crise desde o sumiço do comunismo soviético. Ou do socialismo real, como diziam os próprios comunistas. Ou do comunismo histórico, como chamava o pensador italiano Norberto Bobbio. Mas, para além do desmonte da União Soviética, que nunca foi referência ideológica do PT, a mudança no mundo foi muito maior do que a simples queda de um muro em Berlim. E, até hoje, a esquerda não reencontrou seu caminho diante das mudanças mais profundas, como a mundialização financeira, a fragmentação de classe e a transformação radical ocorrida no mundo do trabalho e da produção.
Embora engolfado pela crise da esquerda em geral, o PT contribui fartamente para a própria desorientação ideológica ao tropeçar em uma leitura excessivamente infantil da realidade. Nos treze anos em que esteve no poder, o PT achou que Bolsa Família era igual a Estado de bem-estar social. Confundiu nível de renda com classe social, confundiu oprimido com assalariado, confundiu doutrina com dogma, confundiu público com partidário, militante com servidor, atividade partidária com expediente comercial - e, sobretudo, confundiu a "ética na política" que defendia com tanto entusiasmo com uma roubalheira tão estruturada que chamou a atenção até dos velhos propineiros da política brasileira.
Sem entender a fragmentação de classe na globalização financeira e tecnológica, o PT confundiu, por fim, o "nós e eles" com um substituto bastardo da luta de classes. A estudante Isabella Marquezini, 13 anos, estava nascendo quando o PT chegou ao poder. Em 13 de março passado, ela foi à primeira manifestação popular de sua vida. Na noite de domingo, foi à segunda, ambas na Avenida Paulista. Ali, ela pôde comemorar o resultado que seus pais queriam, que ela queria. E acabou na capa desta edição extra de VEJA, com um sorriso no rosto, o mesmo sorriso que percorreu a maior parte do Brasil na noite histórica do domingo 17 de abril de 2016.Fonte:Veja(especial)