Desde sua estreia na direção, em 2000, com Coisas que Você Pode Dizer Só de Olhar para Ela, o colombiano Rodrigo García, filho do escritor Gabriel García Márquez, se provou tão arguto e perceptivo nas suas observações sobre os dramas interiores de pessoas comuns, e tão minucioso na maneira como dispõe essas observações, que cada filme ou episódio de série que ele dirige (vários, por exemplo, de In Treatment) constitui um prazer distinto. Essa nitidez e essa compreensão iluminam Últimos Dias no Deserto (Last Days in the Desert, Estados Unidos, 2015), que estreia nesta quinta-feira no país.
O filme trata da etapa final da perambulação de quarenta dias que Jesus fez pelo deserto — durante a qual ele refletiu, jejuou e por três vezes foi tentado por Satã a dar as costas a Deus e abandonar o destino de sacrifício que lhe foi traçado. Os Evangelhos descrevem o episódio de maneira sucinta, e García se aproveita dessa brevidade para imaginar sua versão pessoal. Ewan McGregor, em um desempenho belíssimo, é ao mesmo tempo Jesus e Satã.
A tentação que Satã oferece a Jesus não é a vida, ou poder, mas a simples resolução de um conflito. Já perto de Jerusalém, onde em breve será crucificado, Jesus encontra um carpinteiro, a mulher doente dele e o jovem filho do casal (Ciarán Hinds, Ayelet Zurer e Tye Sheridan). O rapaz sonha com uma vida menos árdua que a de seguir os passos do pai, mas se sente atado à obrigação filial. A mãe toma seu partido. Resolva esse dilema a contento de todos os três, diz Satã a Jesus, e eu deixarei você em paz.
Esse é um trecho dos Evangelhos carregado de simbolismo: põe em evidência o lado humano de Jesus, ao indicar a tribulação que ele teve de atravessar até aceitar seu papel como Filho de Deus. No soberbo A Última Tentação de Cristo, o escritor Nikos Kazantzakis e o diretor Martin Scorsese politizavam a dúvida de Jesus. Já Rodrigo García dá a ela inflexão psicanalítica: um pai e um filho quaisquer vivem as incertezas que atormentam o Filho — entre as quais o temor de ser uma mera continuação, sem identidade própria, do Pai. Mesmo Satã, aqui, é um desdobramento freudiano: o lado de Jesus que pondera como seria ofender o Pai. Últimos Dias nada tem de blasfemo, contudo. Ao contrário, termina por colocar o sacrifício na sua terrivelmente dolorosa dimensão humana.