O texto, aprovado ontem numa manobra sorrateira, livra de punição os prefeitos que gastarem mais de 60% das receitas com funcionários e aposentadorias, caso a arrecadação caia mais de 10% em virtude de redução nos repasses do Fundo de Participações dos Municípios (FPM), royalties e outras receitas especiais.
À primeira vista, o argumento dos legisladores parece sensato, pois em tese os prefeitos não têm responsabilidade alguma por tais receitas, portanto não haveria justificativa moral para a punição. Tal argumento, contudo, é falacioso.
A responsabilidade fiscal não é o terreno da moral, mas do pragmatismo. Ela existe para manter o Estado dentro dos limites que a sociedade é capaz de financiar com o trabalho e a produção. Assim como deve haver bom senso na renegociação de dívidas em momentos de crise, critérios de austeridade são essenciais para não criar incentivos perversos que desandem na esbórnia orçamentária.
Para preservar a saúde fiscal, o correto não é permitir a gastança, mas fornecer às prefeituras meios mais eficazes para o corte de despesas (como autorizar demissão de funcionários, reduções no pagamento de aposentadorias e pensões, nas mordomias etc.). Derrubar o limite para despesas é exatamente o contrário do que deve ser feito caso caiam as receitas. Amplia o déficit público e incentiva as prefeituras a ter menos cuidado para não aumentar gastos.
Não é uma novidade que criar municípios se tornou um negócio no Brasil. Desde a Constituição de 1988, surgiram 1.190 novos municípios, mais de um quinto do total de 5.568. Parte deles se justifica, mas uma fração considerável serve apenas para dirigir os recursos da União à burocracia municipal, com seus vereadores, assessores, carros oficiais, planos de aposentadoria e assim por diante.
De acordo com a última análise publicada pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), com dados de 2016, 86% dos municípios brasileiros estão em situação fiscal crítica. O motivo é justamente o alto comprometimento do Orçamento com gastos obrigatórios, em especial as despesas com pessoal.
Apenas 136 municípios em todo o país, diz a Firjan, arrecadaram mais de 40% de suas receitas com tributos municipais. Quase 82% da amostra (3.714 municípios) não geraram nem mesmo 20% das receitas em 2016. Dependem, sobretudo, dos repasses do governo federal para sustentar a máquina pública.
A situação deve ser ainda mais exasperante, pois a Firjan não obteve acesso a dados oficiais de 1.024 municípios, apesar de a lei estabelecer prazos e normas para a publicação. Na época do estudo, 575 prefeituras já haviam ultrapassado o limite legal de 60% dos gastos com pessoal.
Pelos últimos dados divulgados neste mês pela Secretaria do Tesouro, as despesas correntes dos municípios aumentaram 5% em 2017; as com pessoal, 6,8% – ambas acima da inflação de 3,4% naquele ano.
Entre as capitais, oito superaram em 2017 o limite de 60% dos gastos com pessoal: Rio de Janeiro (76%), João Pessoa (63%), Maceió (62%), Porto Velho (61%), Vitória (61%), Fortaleza (60%), Florianópolis (60%) e Cuiabá (60%). Na média, os gastos com pessoal foram de 56% da arrecadação. As que menos gastaram foram São Paulo (44%), Boa Vista (45%) e Salvador (46%).
Das capitais, São Paulo é aquela com maior arrecadação própria, mais de 70%. Mas Boa Vista, que também consegue manter sob controle os gastos com funcionalismo, é a que mais depende do governo federal: tem apenas 26% de arrecadação própria.
Esse exemplo mostra que a maior dependência de recursos da União não justifica, por si só, o desrespeito ao limite legal – como dá a entender o texto da nova lei. O que quebra os municípios é a rigidez nas despesas de custeio da máquina, sobretudo com pessoal.
O correto, portanto, não é afrouxar os critérios que garantem a saúde fiscal, mas reduzir a rigidez nos gastos. A ideia mais sensata é permitir demissões de funcionários públicos em situação de crise (como ocorre em qualquer empresa privada), ou reduzir mordomias e a estrutura de administrações municipais incapazes de se sustentar.
Em vez disso, o que existe no Congresso é um projeto de lei complementar que torna mais fácil criar ainda mais municípios, sem nenhuma preocupação com o financiamento da administração. Aprovado no Senado, aguarda votação no plenário da Câmara.Fonte:G1