Há um abismo entre o pedido da força-tarefa da Lava Jato no Rio e a decisão do juiz federal Marcelo Bretas que determinou a prisão do ex-presidente Michel Temer. Três fatos mais recentes sobre a suposta atividade criminal de Temer, citados no pedido de prisão dos procuradores, foram ignorados pelo juiz na decisão.
Um magistrado não utiliza fatos citados pelos procuradores quando os considera sem importância.
Temer foi preso nesta quinta (21) sob acusação de liderar um grupo criminoso que teria desviado R$ 1,8 bilhão de contratos públicos, incluindo as obras da usina nuclear Angra 3. Os procuradores vão apresentar denúncia na próxima semana na qual imputam a ele os crimes de lavagem de dinheiro, corrupção e peculato (desvio ou apropriação de recursos públicos). Ele não será acusado de líder de organização criminosa porque foi denunciado por esse crime na ação penal que ficou conhecida como quadrilhão do MDB. Ninguém pode ser acusado duas vezes pelo mesmo crime.
Os fatos ignorados na decisão do juiz são os seguintes:
1) Houve uma tentativa de depositar R$ 20 milhões em dinheiro vivo numa conta bancária de uma empresa do coronel João Baptista Lima Filho, apontado como operador de recursos ilícitos de Temer. A tentativa ocorreu em outubro de 2018, segundo os procuradores. O banco recusou o depósito porque o dinheiro não tinha origem clara;
2) Os procuradores dizem ter indícios de ocultação de recursos ilícitos no exterior;
3) Temer e aliados como o ex-ministro Moreira Franco são acusados de monitorar integrantes da Polícia Federal que investigam o grupo de Temer, o que é visto como uma tentativa de obstrução da Justiça pelos procuradores.
A decisão de Bretas foi criticada por professores de direito e advogados por não apontar fatos recentes que justificassem a necessidade da prisão preventiva.
Esse tipo de prisão só pode ser decretado quando há risco de que o investigado continue a praticar crimes, tentativa de destruir provas ou para a conveniência da instrução da ação penal.
Uma súmula do Supremo Tribunal Federal prevê que a prisão preventiva, feita antes da condenação e sem prazo definido para acabar, não pode utilizar fatos antigos contra o suspeito.
O fato mais recente citado pelo juiz na decisão sobre a prisão de Temer ocorreu em maio de 2017, há quase dois anos: a PF encontrou vazios os escritórios da empresa do coronel Lima quando fez uma busca no local. Havia também uma ordem para que as imagens das câmeras de segurança fossem apagadas diariamente, o que foi interpretado pela PF como uma tentativa de evitar que os investigadores descobrissem quem frequentava o local.
Bretas fundamentou a decisão da prisão dizendo que Temer é líder de uma organização criminosa que continua praticando ilicitudes. Não citou, porém, nenhum dos indícios mais recentes listados pela força-tarefa da Lava Jato.
"Não vejo nenhum fundamento para a prisão preventiva de Temer. A prisão dele foi desnecessária e espetaculosa", afirma Gilson Dipp, ministro aposentado do STJ (Superior Tribunal de Justiça) e criador das varas especializadas em lavagem de dinheiro, que diz ter pavor político do ex-presidente.
Segundo ele, há uma banalização do uso do conceito de organização criminosa nos decretos de prisão. "É preciso ter uma descrição minuciosa de como a organização criminosa funciona e qual é o papel dos seus integrantes. É preciso também mostrar que há crimes recentes praticados pelo grupo, e não há nada disso na decisão sobre a prisão de Temer".
"É totalmente incomum e inexplicável o fato de o juiz ter ignorado esses fatos", diz Gustavo Badaró, professor de direito penal da Faculdade de Direito da USP.
Coordenador da força-tarefa na Lava Jato no Rio, o procurador Eduardo El Hage diz que o fato de o juiz não ter citado esses fatos recentes não é grave. "O juiz entendeu que já havia outras fundamentações e que elas eram suficientes para a prisão."
Segundo ele, a prisão de Temer é necessária porque há dinheiro desviado que continua em circulação. Ele cita como exemplo os R$ 20 milhões que tentaram depositar numa conta de uma empresa do coronel Lima. Diz também que há indícios de que o grupo e Temer usou doleiros para tirar dinheiro do país.
O procurador diz que há algo em comum entre a prisão de Temer e a do ex-governador Sérgio Cabral. "Há semelhança entre as prisões de Temer e Cabral. No caso de Cabral, houve a prisão quando não sabíamos onde ele tinha colocado o dinheiro desviado. Depois recuperamos US$ 101 milhões. A prisão serviu para descobrir onde o dinheiro estava escondido."
No pedido de prisão, os procuradores também citam movimentação de recursos no exterior, em 2016, em contas na Suíça atribuídas ao almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, ex-presidente da estatal Eletronuclear e apontado como integrante da organização chefiada por Temer.
TENTATIVA DE DEPÓSITO
Um dos episódios que serviram de base para o pedido de prisão de Temer e seus aliados foi uma suposta tentativa de depósito de R$ 20 milhões em espécie em outubro passado em uma conta da Argeplan, empresa do coronel João Baptista Lima Filho.
Segundo o Ministério Público Federal, a agência onde ocorreu a tentativa de movimentação fica na zona oeste de São Paulo, perto da sede da empresa.
O episódio é pouco explicado no documento, que reproduz um relato do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), órgão que tem entre as suas funções prevenir crimes financeiros.
A comunicação do Coaf afirma que o depósito foi recusado pela agência, "sendo que na abordagem foi solicitado ao portador a comprovação da origem dos valores para recebimento e reativação da conta, em atendimento à legislação".
"O portador, que não se identificou, se retirou da agência e não obteve êxito na realização do depósito", diz o relatório do Coaf.
O próprio Ministério Público afirma no pedido de prisão que vai pedir mais informações sobre o assunto.
Uma tentativa de depósito de origem ilegal nesse volume é inusitada pelo risco envolvendo a operação, que pode ser facilmente detectada por órgãos de controle.
Ainda assim, o caso foi citado também em entrevista coletiva, após a prisão de Temer, para reforçar o conjunto de suspeitas contra o ex-presidente. "Um fato extremamente recente, que aconteceu depois até da prisão temporária do coronel Lima, que havia sido preso em abril de 2018. Claro que esse fato precisa ser mais bem aprofundado, mas é um indicativo de que a organização criminosa continua atuando", disse a procuradora Fabiana Schneider.
Para se ter dimensão do volume em dinheiro vivo, R$ 20 milhões equivalem a 40% da quantia encontrada em Salvador atribuída ao ex-ministro Geddel Vieira Lima, em 2017.
Fotografias feitas pela PF na operação contra Geddel mostravam aquele valor acomodado em ao menos sete caixas grandes e oito malas dentro de um apartamento na capital baiana. O caso permanece como a maior apreensão de dinheiro em espécie feita PF.Fonte:Folhapress