quinta-feira, 29 de agosto de 2019
Para cardeal, Bolsonaro nega visão comunitária ao recusar ajuda internacional à Amazônia
Um dos principais organizadores do Sínodo da Amazônia na América Latina, um encontro com cerca de 250 bispos da Igreja Católica marcado para outubro no Vaticano por determinação do papa Francisco, o arcebispo da diocese de Huancayo, no Peru, Pedro Barreto Jimeno, disse que o presidente Jair Bolsonaro nega “visão comunitária” ao recusar ajuda internacional a fim de debelar incêndios na Amazônia. Ele disse que Bolsonaro também não deve aguardar pedido de desculpas do presidente francês, Emmanuel Macron, para receber a ajuda, e sim buscar “o bem comum”.
“Eu li há pouco que Bolsonaro aceitaria essa ajuda [financeira do G7] se o presidente Macron retirasse suas palavras. Aqui não se trata de retirar de palavras ou não palavras, o que se trata é buscar o bem comum, que está acima de qualquer disputa entre pessoas”, disse Barreto em entrevista à imprensa em Lima nesta quarta-feira (28).
Para o cardeal, “qualquer pessoa ou instituição que está numa situação difícil, aceita a ajuda para buscar o bem comum de todos”. “Há um despertar da consciência sobre a universalidade da Amazônia, a importância que ela tem para o mundo. Portanto fechar-se a uma experiência de solidariedade não cabe num mundo que quer unir-se novamente pelo cuidado da vida e da natureza”, disse Barreto.
O cardeal peruano é o vice-presidente da Repam (Rede Eclesial Pan-Amazônica), uma aliança entre religiosos católicos dos países amazônicos criada em 2014 e que desde o ano passado levanta subsídios para o Sínodo –o presidente da rede é o brasileiro Claudio Hummes. Ambos são próximos do papa Francisco.
A Repam ouviu mais de 87 mil moradores da Amazônica, segundo os organizadores, além de ter realizado 45 assembleias e outras 20 reuniões temáticas. Em outubro, são esperados 250 cardeais no Vaticano, dos quais 150 da região amazônica. Líderes indígenas também foram convidados a participar do evento. Ao final, o papa lerá uma mensagem sobre a Amazônia.
Barreto disse que a ajuda internacional para debelar incêndios na Amazônia “é um gesto de solidariedade mundial”. “Então se Bolsonaro não aceita essa ajuda, está negando essa visão comunitária. [Aceitar] sem perder a identidade do Brasil. A Amazônia brasileira será brasileira, peruana é peruana, mas tem que haver algo [pelo bem] comum”, disse o cardeal.
Indagado se os discursos de Bolsonaro sobre permitir mineração em terras indígenas e não demarcar mais nenhuma terra indígena em seu governo colaboram para incentivar a destruição da Amazônia, o cardeal concordou e disse que empresários que defendem essa posição têm interesses mesquinhos.
“Sim. Na verdade não conheço muito as declarações, mas sim no fundamento. É uma atitude, me parece, muito intransigente. É ver a Amazônia como propriedade que pode fazer com ela o que melhor me pareça. E inclusive os sindicalistas [empresários] estão apoiando essa posição de Bolsonaro, empresários. Mas são interesses, eu diria, mesquinhos, porque é aproveitar-se de população indígenas que ancestralmente estão presentes, antes da República no Brasil. Eles [indígenas] enriqueceram a Amazônia ao longo dos séculos. Eles saíram intercambiando dentro de suas populações. São mais de 390 populações indígenas amazônicas, mais de 240 línguas. […] O papa Francisco disse: 'Temos que aprender com eles'”, afirmou o cardeal.
Barreto também foi indagado sobre as reações do governo Bolsonaro ao Sínodo da Amazônia. Militares como o ministro e general Augusto Heleno (GSI) têm dito que não concordam com manifestações da Igreja que possam configurar ingerência na política brasileira para a Amazônia.
“Não sei [a posição oficial do governo]. Indiretamente, a posição do presidente Bolsonaro está indicando como que 'a Igreja não se meta em território que não lhe pertence'. Esta é a visão que temos. Não é oficial. Mas aqui temos que dizer com clareza que a Igreja Católica é universal, não tem fronteiras. As fronteiras quem criou foram os homens. A força da missão evangelizadora da Igreja é convocar a todos, sem excluir ninguém”, disse o cardeal.
Barreto citou passagem bíblica segundo a qual Jesus Cristo diz que “os filhos das trevas são mais astutos que os filhos das luzes”. O cardeal disse que gostaria de dizer a Jesus que hoje a situação está mudando. “Eu me alegro desse comentário de Bolsonaro [sobre o Sínodo] porque está ratificando o que lhes disse antes, 'agora os filhos da luz são mais astutos do que os filhos das trevas'. O despertar mundial tanto de políticos como de organizações do mundo todo. Eles estão levantando sua voz e estão expressando sua indignação que há hoje pelo maltrato da natureza. Que é um dom de Deus para todos, não para um grupo de privilegiados. Os recursos naturais que Deus pôs [no mundo] são para todos, não para alguns que se sentem donos, de alguma maneira, por séculos. Mas agora as coisas estão mudando. Ou nos salvamos todos ou perecemos todos”, disse o cardeal.
Segundo o cardeal, a Igreja está buscando esclarecer aos países amazônicos que o Sínodo não configura ameaça à soberania nacional. Ele contou que, em junho, foi convidado pela Secretaria de Estado do Vaticano a falar com embaixadores dos nove países amazônicos e núncios apostólicos, representantes do Papa. O Brasil não enviou um embaixador, mas sim um representante.
“Ali eu expliquei o que é Repam e disse que não se assustem. Porque a Igreja não está contra a identidade de cada país. Porque os países que formam a Amazônia têm que estar muito unidos e muito claros em respeito à vida e à Amazônia, como bioma. […] A Santa Sé, Secretário de Estado que tem relação com os países, convocou essa reunião para dissipar as preocupações”.
O cardeal peruano, contudo, vê possibilidade de problemas futuros caso “Bolsonaro seguir falando” sobre desmatamento na Amazônia. “Vai chegar um momento em que a população mundial e as autoridades mundiais vão dizer: 'Você não é dono da Amazônia. Você não pode desmatar toda a Amazônia porque nos afeta a todos'. Isso do ponto de vista científico, não religioso. Então a autoridade mundial, sem que isso signifique a internacionalização da Amazônia, todos temos que cerrar fileiras. Creio que é por aí que as coisas vão seguir.”
Barreto rebateu eventuais críticas sobre a Igreja citando o trabalho missionário na região amazônica. “A Igreja está presente na Amazônia e não vai embora quando se encherem suas malas. Há gente que, quando enche as malas, se vai da Amazônia. A Igreja fica e ficará até o final na Amazônia. Onde estão aqueles seringueiros, por exemplo, que afetaram as comunidades indígenas, no Peru, na Colômbia, no Equador? Onde estão os empresários que fizeram uma destruição na natureza e destruíram milhares de vidas indígenas? A Igreja continua aí, com suas luzes e com suas sombras, temos que reconhecer.” Fonte:Folha