Os prejuízos causados ao ensino pela suspensão de aulas presenciais durante a pandemia do coronavírus tendem a acentuar desigualdades que já existiam antes da Covid-19, ampliando as diferenças entre estudantes pobres e ricos e criando novas dificuldades para a reabertura das escolas.
Cálculos de um grupo ligado à Rede de Pesquisa Solidária, que monitora políticas de enfrentamento da pandemia, sugerem que alguns alunos de famílias pobres sofrerão perdas de aprendizagem equivalentes às que teriam se ficassem o ano inteiro sem aulas, quase duas vezes a perda projetada para os mais ricos.
As simulações foram feitas com base nos resultados das provas do Saeb (Sistema de Avaliação de Educação Básica), que a cada dois anos aplica testes para avaliar a aprendizagem de língua portuguesa e matemática e coleta informações sobre estudantes da rede pública e de escolas particulares.
Seguindo uma metodologia desenvolvida pela consultoria Herkenhoff & Prates, especializada na avaliação de políticas públicas, os pesquisadores estimaram o dano causado pela pandemia em vários cenários, de acordo com as condições sócio-econômicas e outras diferenças entre os alunos.
Conforme as estimativas, alunos entre os 20% mais pobres da população sofrerão perdas de 50% a 87% do aprendizado de um ano normal. Os que já tinham vínculo forte com a escola, computador em casa e acompanhamento de pais com maior nível de escolaridade tendem a sofrer danos menores.
Estudantes entre os 20% mais ricos sofreriam perdas equivalentes a 50% na maioria dos cenários. Eles têm melhores condições de reter o que aprenderam antes da pandemia e dispõem de mais recursos para continuar estudando em casa mesmo com as escolas fechadas, dizem os pesquisadores.
"A pandemia tornou os alunos mais dependentes do acompanhamento das famílias em casa, e aí as diferenças de capital cultural e renda pesam muito", diz o sociólogo Ian Prates, pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e coordenador do grupo responsável pelas simulações.
Parte da explicação está na dificuldade que os estudantes mais pobres têm para acessar a internet, o que os impediu de aproveitar atividades desenvolvidas pelas escolas nos casos em que algum tipo de ensino remoto foi oferecido durante os meses de suspensão das aulas presenciais.
Segundo uma pesquisa realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em julho, cerca de 8 milhões de estudantes de 6 a 17 anos de idade não tiveram acesso a atividades de ensino remoto, o equivalente a 24% do total de alunos matriculados em escolas das redes pública e privada.
Nas famílias mais pobres, 30% dos estudantes não tiveram acesso a ensino remoto em julho, de acordo com o IBGE. Em seis estados - Amapá, Bahia, Pará, Piauí, Sergipe e Tocantins - mais de 50% dos alunos estavam nessa situação na época em que os pesquisadores do IBGE contataram suas famílias.
"As desvantagens que os estudantes mais pobres já tinham antes da pandemia se acentuaram com o atraso deste ano e o impacto da crise econômica sobre suas famílias", diz Prates. "É provável que tenham mais dificuldades para recuperar o tempo perdido e desenvolver suas capacidades no futuro."
Cálculos dos pesquisadores com base em dados do IBGE indicam que alunos das famílias mais ricas conseguiram estudar cinco horas a mais por semana do que os mais pobres em julho - uma diferença equivalente a 28 dias de aula se for extrapolada para os quase seis meses em que as escolas estão fechadas.
Na avaliação do grupo, o Ministério da Educação poderia ter contribuído para evitar o aprofundamento dessas desigualdades se tivesse cooperado com prefeituras e governos estaduais na busca de boas práticas para o ensino remoto e parcerias para ampliar o acesso dos estudantes pobres à internet.
"A ausência de diretrizes do governo federal para a área de educação deixou os governos locais sozinhos para enfrentar o problema de forma descoordenada", diz Prates. "A experiência de outros países poderia estar sendo melhor aproveitada para preparar a retomada das aulas presenciais".
A Rede de Pesquisa Solidária reúne dezenas de pesquisadores de instituições públicas e privadas, como a Universidade de São Paulo, o Cebrap e a FGV (Fundação Getúlio Vargas). Desde abril, eles têm produzido boletins semanais, que estão disponíveis no site da iniciativa.