No último 4 de Maio, ingressaram no STF três mandados de segurança impetrados respectivamente pelo PPS (26.602), PSDB (26.603) e DEM (26.604) contra o ato da Presidente da Câmara dos Deputados que arquivou os seus pedidos de que fossem empossados os suplentes de determinados deputados federais, em função destes últimos estarem desfiliados das legendas que os elegeram e, no entendimento dos Partidos, terem perdido automaticamente seus mandatos. Para Chinaglia, a devolução dos mandatos deve ser analisada pela Justiça.
O pedido dos Partidos é consequência imediata do entendimento exarado pelo TSE, no último dia 27 de Março, na resposta a consulta administrativa (CTA 1398) formulada pelo Partido Democratas (antigo PFL), que restabeleceu a chamada fidelidade partidária para os cargos obtidos nas eleições proporcionais: “o mandato de vereadores, deputados federais e estaduais pertence ao partido político e às coligações e não aos candidatos eleitos”.
Sistema proporcional e Fidelidade Partidária
De fato, as eleições pelo sistema proporcional são voltadas a determinar as cadeiras de cada Partido na casa legislativa. Quando o eleitor vota, os dois primeiros dígitos são os do Partido Político. Apertará os dois seguintes somente porque o Brasil adota o sistema das listas abertas, onde se escolhe quem representará o Partido no Poder Legislativo.
Mais ainda, é o quociente partidário que elege os nossos mandatários: nesta última eleição (outubro 2006), dos 513 deputados federais eleitos, somente 31 (6,04%) alcançaram por si mesmos (com seus votos nominais) o quociente eleitoral. O mesmo sempre ocorreu: em 1994, apenas 13 (2,53%); em 1998, apenas 28 (5,45%).
O número de representantes de um Partido é, de fato, determinado pelos votos da legenda. No entanto, a eleição ou não de um candidato concreto depende também de sua capacidade de angariar votos individuais, pois os mais votados assumirão as cadeiras conquistadas pelo Partido.
Se a vaga é do Partido (este aparenta ser o logos do sistema), como justificar que destes últimos deputados federais eleitos já tenhamos 36 que abandonaram suas siglas? Mais ainda, que 28 destes migraram para as siglas opostas às suas de origem (migraram da base oposicionista para a governista)? Estaríamos desrespeitando ao voto, à soberania popular (art. 1º, parágrafo único, da CF 88)?
A lógica parece indicar que os Partidos tem razão em reivindicar as cadeiras que conquistaram. Mas não basta a lógica para compreendermos o problema. Precisamos de pitadas da realidade institucional.
A realidade institucional partidária
No Brasil, a institucionalização partidária é muito débil, é fraca a vinculação ideológica ou programática entre os eleitores e os Partidos, bem como entre os candidatos e os Partidos.
A institucionalização partidária se verificaria se houvesse uma efetiva expectativa dos eleitores de que no futuro (após as eleições) o comportamento parlamentar seguiria as diretrizes partidárias. Em verdade parece-nos que esta expectativa se dá apenas para com as promessas dos líderes partidários, não para com os programas dos Partidos.
Há um frágil enraizamento partidário em nossa sociedade. O vínculo entre os eleitores e os candidatos é mais personalista do que partidário. Muitos eleitores escolhem os candidatos baseados em suas características pessoais (simpatia pelos traços da personalidade), sem levar em conta o Partido a que pertencem, as questões programáticas, a ideologia.
Os Partidos, neste sistema fluído, são atores importantes, mas não possuem efeito estruturador, este efeito é medianamente atingido apenas pelos líderes da legenda. A competição partidária, em nosso sistema desestruturado, não é ideológica. A cena política é dominada mais por personalidades do que por Partidos (e o sistema de listas abertas incentiva fortemente o individualismo nas campanhas). Ademais, os Partidos são programaticamente difusos, suas fronteiras atuais possuem muito pouco significado.
Todos esses apontamentos são razões que explicam a afirmação de Scott Mainwaring e de Mariano Torcal: “partidos aparecem e desaparecem com frequência, onde a competição entre eles é ideológica e programaticamente difusa e onde as personalidades costumam ofuscar os partidos” (Teoria e institucionalização dos sistemas partidários após a terceira onda de democratização. Opinião Pública, Campinas, Vol. XI, n. 2, Outubro, 2005, p. 276). Acrescentaria, fundem-se, coligam-se não ideologicamente, mas em função dos interesses políticos momentâneos...
Imerso na realidade apontada, podemos continuar a defender ardorosamente a fidelidade partidária?
Moralidade política
Além do fundamento da lógica do sistema proporcional, o TSE apontou que razões de moralidade exigem a perda do mandato para os parlamentares que se desvinculem voluntariamente da legenda que os elegeram.
Parte de uma constatação não-empírica, mas intuitiva, de que os políticos seguem exclusivamente os seus interesses pessoais na troca de Partidos, pois os dois momentos em que as mudanças se intensificam são justamente logo após as eleições (quando se presume que aderem aos Partidos vitoriosos em busca de cargos e verbas), e ao final da legislatura (quando se presume que buscam Partidos com maior potencial de elegibilidade).
E, afirma literalmente, “O princípio da moralidade, inserido solenemente no art. 37 da Carta Magna, repudia de forma veemente o uso de qualquer prerrogativa pública, no interesse particular ou privado, não tendo relevo algum afirmar que não se detecta a existência de norma proibitiva de tal prática.”
Questiono: Se um Partido não dá atenção efetiva às propostas de um determinado parlamentar e este recebe a oportunidade de exercer concretamente os projetos e convicções (que em princípio o elegeram) em outra agremiação, este parlamentar estaria desrespeitando ao Partido, mas respeitando a ideologia que o elegeu? Afinal, o mandato pertence ao povo ou ao Partido? De outra forma, o eleitor, de fato, quer ver a frente dos comandos políticos um determinada proposta político-partidária ou um determinado parlamentar?
Pesquisa feita na cidade do Rio de Janeiro pelo IUPERJ, em 1994, mostrou que 74% dos eleitores escolheram seus Deputados Federais independentemente do Partido. Pesquisados pelo IBGE em 1996, 68% dos entrevistados consideraram o candidato mais importante do que o Partido, na hora de votar (Cf. Eliane Cruxên Barros de Almeida Maciel. Fidelidade Partidária: um panorama institucional. Brasília, junho/2004).
Outro problema que enfrentamos na realidade é que os Partidos sofrem mudanças constantes nas suas orientações. Como julgar os impasses entre parlamentares fiéis à orientação anterior e a direção partidária, que exige de seus parlamentares fidelidade a novas diretrizes, mesmo que inovem em relação ao programa original do Partido? Os parlamentares fiéis às novas posturas, estariam sendo infiéis aos eleitores?
Regime jurídico-constitucional
A Constituição de 1967 foi a primeira mencionar o problema da fidelidade partidária. Em seu artigo 149, no entanto, fixava única e exclusivamente que os Partidos seriam regidos por lei que observaria o princípio da disciplina partidária.
Ganhou status constitucional, o instituto da fidelidade partidária, somente com a EC n. 1/69. O parágrafo único do artigo 152 fixava que “Perderá o mandato no Senado Federal, na Câmara dos Deputados, nas Assembléias Legislativas e nas Câmara Municipais quem, por atitudes ou pelo voto, se opuser às diretrizes legitimamente estabelecidas pelos órgãos de direção partidária ou deixar o partido sob cuja legenda foi eleito”. Mais ainda, que a “perda do mandato será decretada pela Justiça Eleitoral, mediante representação do partido, assegurado o direito de ampla defesa”.
A EC n. 11/78 acresceu ressalva à perda de mandato (que beneficiaria futuramente ao Senador Tancredo Neves): se o “deixar o Partido” fosse motivado para “participar, como fundador, da constituição de novo partido”.
A EC n. 25/85 desconstitucionalizou o tema, pois simplesmente excluiu o texto antes em vigor.
A Constituição de 1988 voltou a falar da fidelidade, mas não a fixou. Indica apenas que os Partidos Políticos DEVEM estabelecer em seus estatutos “normas de disciplina e fidelidade partidária” (art. 17, §1º). Sistematicamente (a interpretação sistemática revela a completude do significado), no entanto, impede que a infidelidade redunde na perda do mandato, pois o art. 55 que regula os casos de perda de mandato não elenca esta hipótese.
Em 1995, a lei nacional dos Partidos Políticos (9.096/95), estabeleceu que “filiado algum pode sofrer medida disciplinar ou punição por conduta que não esteja tipificada no estatuto do partido político” (art. 23, §1º) e logicamente que esteja proibida pela Constituição, assegurando-lhe o amplo direito constitucional a defesa (art. 23, §2º).
Desta forma, a lei fixa que o estatuto do Partido PODERÁ estabelecer (I) em função da indisciplina (art. 25 - oposição às diretrizes): a perda das funções e cargos partidários (pois nelas representa ao Partido), não das funções parlamentares; a suspensão do direito de voto nas reuniões internas do Partido, não do direito de voto no parlamento, (II) em função da infidelidade (art. 26 - deixar o Partido): a perda das funções e cargos partidários, não das funções parlamentares.
A perda do mandato
A medida gravosa da perda dos direitos políticos e da perda do mandato parlamentar são fixadas pela Constituição Federal de 1988, respectivamente nos artigos 15 e 55. Apresentam rol exaustivo (MS 20927 e MS 23405 do STF) de casos de perda, garantindo-se o devido processo legal, o direito a ampla defesa e ao contraditório.
Por mais que a lógica do sistema proporcional indique a perda do mandato (embora a realidade institucional semeie dúvidas sobre a justiça dessa postura), o entrave Constitucional é inafastável. Ainda mais, se percebermos que a tentativa dos Partidos é de que se declare uma perda automática, sem o processo devido.
Nesse sentido, categórica a afirmação de Clèmerson Merlin Clève: “O fato de, no sistema constitucional brasileiro contemporâneo, o parlamentar não perder o mandato em virtude de filiação a outro partido ou em decorrência do cancelamento da filiação por ato de infidelidade é eloqüente. Ainda que, doutrinariamente, o regime do mandato possa sofrer crítica, é induvidoso que, à luz do sistema constitucional em vigor, o mandato não está à disposição do partido.” (Fidelidade Partidária – estudo de caso. Curitiba, Juruá, 1998, p. 29, nota 13)
Em razão disso que a lei dos Partidos Políticos fixa única e exclusivamente a perda do cargo e da função e não do mandato.
Proposta de alteração constitucional
Há muito se discute no Congresso Nacional o retorno das regras de fidelidade partidária abolidas em 1985, argumentando-se que somente assim o sistema político e partidário nacional amadurecerá. Mais de 15 propostas de emenda constitucional já foram apresentadas nesse sentido, com diferenças importantes: para a PEC 41/96 e para a PEC 166/95 a perda de mandato implicaria na inelegibilidade por dois anos; para a PEC 283/95 a perda ocorreria para quem mudasse de Partido antes de cumprir 2/3 do mandato; para a PEC 51/5, antes da metade do mandato; para a PEC 90/95, a consequência da infidelidade atingiria também ao chefe do executivo.
De todos os projetos engavetados, talvez o mais discutido tenha sido a PEC 44/98, apresentada pela Comissão Especial da Reforma Político-Partidária que sugeria (I) a perda automática do mandato, decidida pela Executiva Nacional do Partido, na hipótese de desfiliação partidária dos ocupantes de mandato legislativo, salvo no caso de fusão ou incorporação ou para participar, como fundador, da constituição de novo Partido Político; (II) e a possibilidade de perda (pois seria decidida pela Justiça Eleitoral) de mandato no Legislativo ou no Executivo, na hipótese de violação grave da disciplina partidária, caracterizada pela desobediência às decisões aprovadas em convenção. Em qualquer hipótese, recebida a comunicação da Executiva Nacional do Partido ou transitado em julgado a decisão judicial, a perda seria declarada pela Mesa da Casa respectiva.
Entendemos que a ressalva abrangia tanto aqueles que concordaram com a fusão ou incorporação e passaram a compor o novo Partido, como aqueles que, não concordando com a fusão, passariam a ter a liberdade, o direito subjetivo, de buscar abrigo em outra legenda.
A atual proposta em tramitação é a PEC 23/2007 de autoria do Senador Marco Maciel, que deixa de lado a questão da indisciplina partidária e concentra-se na infidelidade. Estabelece que a perda se dará automaticamente para o membro do Poder Legislativo que se desligar do Partido pelo qual tenha concorrido à eleição, salvo no caso de extinção, incorporação ou fusão do Partido Político. Devendo a mesma ser declarada pela Mesa da Casa respectiva, no prazo máximo de três sessões ordinárias ou extraordinárias, a partir da recepção da comunicação da mais alta instância do Partido político titular do mandato. Prescreve que esta regra entrará em vigor em 1º de janeiro de 2010.
Temos para nós que é insuficiente modificar a Constituição apenas nesse particular, pois, sem Partidos fortes, estáveis e estruturados não se pode exigir fidelidade. Como exigir lealdade a princípios fluidos?
Indisciplina Partidária
É claro que o poder do Partido, se levado ao extremo, degenera no totalitarismo, por outro lado, o total livre arbítrio do parlamentar, se carente de fronteiras, conduz à anarquia. Qual seria então o ponto médio entre a adoção plena da ideologia partidária (tendente ao totalitarismo) e a completa liberdade de expressão e ação (tendente ao desrespeito ao eleitor)?
É preciso compatibilizar o princípio do mandato representativo e o princípio da liberdade de consciência, de pensamento e de convicção; sob pena de se transformar o mandato representativo em uma nova espécie de mandato imperativo. Situação em que nos depararíamos com parlamentares autômatos, testas de ferro das cúpulas partidárias, que muitas vezes são constituídas até mesmo por “políticos de carreira”, não propriamente por mandatários eleitos.
Parece-nos que a diretriz parlamentária concreta, que justificaria induzir o comportamento do parlamentar, seria somente aquela que claramente fosse um desdobro do conteúdo programático que o Partido representa e que assim o identificava no momento eleitoral. Mudanças ideológicas, mesmo que convalidadas em convenções, não podem constituir regras de atuação parlamentar coercitiva.
Dilema final
Por fim, questiono: se ninguém pode ser privado de seus direitos por motivo de convicção política (art. 5º, VIII), é possível privar aos parlamentares da possibilidade de mudarem de convicção política?
Seria utópico e maléfico ao sistema (que se converteria em meras lutas de classes) que o parlamentar eleito se comportasse da exata forma como os eleitores o fariam se estivessem no seu lugar (mandato imperativo), até mesmo por não se saber, com precisão, quem de fato votou nele. Confia-se, apenas, que corresponderá às expectativas dos eleitores, que seguirá o programa genérico, as grandes linhas nele contidas.
Não é possível ao parlamentar reivindicar a propriedade do mandato, tampouco o pode fazer a legenda. O mandato é do povo e aos seus anseios deve estar atrelado.
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