Incumbida de identificar os responsáveis pelo sábado espantoso, a
Polícia Federal já desperdiçou duas semanas com investigações tão
necessárias quanto o Ministério da Pesca. Alguns agentes gastaram tempo e
verbas na perseguição à maquiavélica empresa de telemarketing que
nunca existiu. Outros seguem interrogando beneficiários do
Bolsa-Família: querem saber por que sacaram antes da hora, mais
precisamente no dia 18, o dinheiro depositado pela Caixa antes da hora –
e colocado à disposição da freguesia pelo menos desde o dia 17. É como
perguntar a uma vítima da seca por que bebeu mais cedo a água do
carro-pipa que chegou mais cedo.
Escalado para impedir o esclarecimento do episódio, José Eduardo
Cardozo tem interpretado com muita aplicação o papel de Inspetor
Clouseau que fala dilmês. “Não é um delito fácil de ser investigado por
força da atuação difusa em todo o território nacional”, pontificou na
primeira cena. Na segunda, ficou alguns segundos em silêncio de sábio
chinês antes de deslumbrar os jornalistas com a mistura de concisão e
sagacidade: “Nenhuma hipótese pode ser descartada”.
Na terceira cena, Cardozo esvaziou o estoque de advérbios para emitir
um parecer de sherloque doidão: “Evidentemente houve uma ação de muita
sintonia em vários pontos do território nacional, o que pode ensejar a
avaliação de que alguém quis fazer isso deliberadamente, planejadamente,
articuladamente”. Numa única frase, quatro palavras terminadas em
“mente”. Quatro rimas pobres para gente que mente.
Se o governo efetivamente pretendesse desvendar a gestação da corrida
aos guichês de pagamento da mesada, é na Caixa que a Polícia Federal
estaria em ação. Se os homens da lei quiserem de fato enquadrar vilões, é
lá que estão homiziados. A operação que terminou com um tiro no pé foi
concebida e executada pelos diretores da instituição, todos nomeados ou
mantidos no cargo por Dilma Rousseff.
Os companheiros da Caixa teriam evitado a onda de saques e
sobressaltos se tivessem guardado uma gota do oceano de publicidade
enganosa para comunicar aos interessados que a distribuição dos
donativos fora antecipada. Por motivos ainda ignorados, optaram pelo
adjutório secreto. Na sexta-feira, alguns clientes do Bolsa-Família
descobriram que o dinheiro chegara antes da data aprazada. Transmitiram a
boa notícia a parentes, amigos e vizinhos, que passaram adiante a
informação. A coisa ganhou volume e o estouro da boiada aconteceu no dia
seguinte.
Como o governo lulopetista jamais perde uma chance de acrescentar
outro capítulo ao espetáculo do cinismo encenado há mais de dez anos, o
Brasil que pensa foi afrontado durante cinco dias pelo recomeço da Ópera
dos Malandros. A procissão de mentiras foi aberta pelo presidente da
Caixa, Jorge Hereda. Caprichando na pose de pronto-socorro dos aflitos,
ele jurou que tivera de montar um esquema de emergência para distribuir
pelos postos de pagamento, ainda no sábado, os R$ 2 bilhões de maio.
“É algo absurdamente desumano”, encolerizou-se a presidente. “O autor
desse boato é criminoso”. Lula enxergou por trás de tudo a mão de
“gente do mal”. O ex-jornalista Rui Falcão ficou à beira do chilique com
o “terrorismo eleitoral”. A tuiteira Maria do Rosário acusou a “central
de boatos da oposição” de espalhar rumores dando conta do fim iminente
do maior programa oficial de compra de votos do mundo.
A verdade só escapou de mais assassinatos porque a
Folha de S. Paulo
provou que a liberação dos recursos do Bolsa-Família fora autorizada
antes do sábado. Desmascarada a farsa, Jorge Hereda apelidou a
delinquência de “erro” e transferiu a culpa para um subordinado que
teria decidido mudar a data do pagamento sem consultar o chefe. Mesmo na
mixórdia em que a Caixa se transformou desde que se subordinou a
interesses político-partidários, ninguém ousaria montar uma operação
bilionária sem o aval do presidente – que não se atreveria a endossá-la
sem o amém da presidente.
Apesar disso, ou por isso mesmo, Dilma fez questão de comunicar à
nação que nenhum dos envolvidos na história muito mal contada ficará
desempregado. “A diretoria é formada por técnicos íntegros e
comprometidos com as diretrizes da CEF, com seus clientes e com os
beneficiários de programas tão importantes para o Brasil como o Bolsa
Família e o Minha Casa, Minha Vida”, avisou a nota oficial divulgada
pelo Planalto.
Baiano de Salvador, o arquiteto e urbanista Jorge Hereda tem tanta
intimidade com assuntos bancários quanto Lula com o plural.
Coerentemente, a equipe de “técnicos íntegros”que comanda produz proezas
como a que inspirou a nota do jornalista Carlos Brickmann:
No
tumulto do Bolsa-Família, a Caixa descobriu que 692 mil famílias têm
dois cadastros e recebem dois auxílios (talvez seja por isso que, como
disseram à TV, haja quem compre jeans de R$ 300 para a filha e pingue
mensalmente algum na poupança). Custo do pagamento ilegal? R$ 100
milhões por mês.
“Nos governos do PT há os incapazes e os capazes de tudo”, afirmou o
deputado Duarte Nogueira, presidente do PSDB paulista. “Maria do Rosário
talvez seja os dois tipos: uma incapaz capaz de tudo”. O dirigente
tucano teria formulado um diagnóstico irretocável se examinasse mais
atentamente a fauna no poder. Alguma degeneração genética provocou a
fusão das duas categorias. Hoje só há marias-do-rosário. Todos são
ineptos sem pudores nem limites.
A Polícia Federal pode dispensar-se de continuar investigando o que
houve no sábado delirante. Foi só mais uma realização dos incapazes
capazes de tudo.FONTE:FOTO/TEXTO-JORNALISTA -AUGUSTO NUNES(VEJA)