O Ministério Público Estadual, por sua representante nesta Comarca, ofereceu Denúncia contra J.L.S.L, qualificado nos autos, sob alegação da prática do crime previsto no artigo 33, da lei nº 11.343/06. Segundo consta da Denúncia, o acusado teria sido preso em flagrante, por ocasião de abordagem policial, com 30 pedras de crack acondicionadas em duas caixas de fósforos. Em sua defesa, quando ouvido no flagrante e também perante o juízo, alegou que não é traficante e que a droga se destinava ao seu consumo pessoal. Em fase de instrução, foram ouvidas as testemunhas arroladas na Denúncia e Defesa. Por fim, em alegações finais, a representante do MP requereu a condenação nos termos da Denúncia e o defensor do acusado requereu a desclassificação para o crime de uso pessoal e absolvição do acusado.
Brevemente relatados, Decido.
A discussão resume-se à definição do tipo penal violado pela conduta do acusado: porte de droga para uso pessoal ou tráfico de drogas? (art. 28 ou 33, Lei 11.343/06)
Ora, o artigo 28, da lei 11.343/06, estabelece as hipóteses em que a conduta é tipificada como consumo pessoal e, sendo assim, não punido com pena privativa de liberdade, a saber:
adquirir,
guardar,
tiver em depósito,
transportar ou
trouxer consigo.
De outro lado, o artigo 33 da mesma Lei estabelece as hipóteses em que a conduta é tipificada como sendo crime em que se prevê a pena privativa de liberdade, a saber:
exportar,
remeter,
preparar,
produzir,
fabricar,
adquirir,
vender,
expor à venda,
oferecer,
ter em depósito,
transportar,
trazer consigo,
guardar,
prescrever,
ministrar,
entregar a consumo ou
fornecer drogas.
Pois bem, observe-se, em negrito, que as mesmas hipóteses podem caracterizar as duas condutas, ou seja, adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer drogas consigo podem caracterizar condutas e tipos penais diversos: artigo 28 e artigo 33 da Lei 11.343/06.
A importância de identificar a norma violada, se artigo 28 ou 33, diz respeito à necessidade de correta tipificação e apenação da conduta praticada. Logo, se os verbos/condutas são coincidentes, é necessário que a doutrina e dogmática penal sejam demandadas para elucidar esta visível aporia. Ora, o que diferencia, em termos punitivos, a situação fática de transportar ou trazer consigo certa quantidade de drogas em face dos artigos 28 e 33 da lei de drogas?
Segundo Salo de Carvalho, “propõe-se, portanto, como critério interpretativo de correção da desproporcionalidade no tratamento de condutas objetivamente idênticas,m mas díspares no que tange à ofensividade do bem jurídico, a necessidade de especificação dos elementos subjetivos de ambos os tipos penais, seja do artigo 33 como como do artigo 28 da Lei 11.343/06 [...] Dessa forma, em havendo especificação legal do dolo no artigo 28 da Nova Lei de Drogas (especial fim de consumo pessoal), para que não ocorra inversão do ônus da prova e para que se respeitem os princípios constitucionais da proporcionalidade e ofensividade, igualmente deve ser pressuposto da imputação das condutas do artigo 33 o desígnio mercantil. Do contrário, em não havendo esta comprovação ou havendo dúvida quanto à finalidade de comércio, imprescindível a desclassificação para o tipo do artigo 28”. (in A Política Criminal de Drogas no Brasil, Ed. Saraiva, 6ed, p. 325).
Em suma, se a condição “para uso pessoal” é determinante para despenalizar as condutas de adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo certa quantidade de drogas, a condição da “mercancia”, obrigatoriamente, também deve ser determinante para penalizar as condutas de guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo certa quantidade de drogas, conforme previsto no artigo 33 da Lei de Drogas.
Nesta construção, portanto, não sendo o caso de inversão do ônus da prova, submetendo-se os fatos ao princípio constitucional da presunção da inocência, é tarefa do órgão acusador fazer prova da ocorrência das hipóteses previstas na lei e, substancialmente, da destinação de mercancia da droga, sob pena de prevalecer, ocorrendo as mesmas hipóteses previstas em artigo diverso, da condicionante de “uso pessoal” alegada pelo agente.
Demais disso, sabe-se que o tráfico de drogas se transformou em uma intrincada rede internacional de interesses econômicos e políticos, incluindo a lavagem de dinheiro no sistema financeiro, tornando-se insignificante, dentro da rede do tráfico, a participação de adolescentes dependentes químicos, denominados “aviões” ou “mulas”, na distribuição de pequenas quantidades de drogas para outros dependentes da própria comunidade ou mesmo para outros jovens de outras classes sociais. Não são esses, evidentemente, os “traficantes” que o sistema de justiça criminal almeja processar e condenar.
Em termos de política criminal, a condenação desses jovens a penas em regime fechado, além de não amenizar o tráfico, serve apenas para comprometer ainda mais o já combalido sistema penitenciário brasileiro e remeter o condenado ao caminho sem volta da criminalidade. Assim, sem políticas de atenção básica e redução da pobreza e desigualdade social, enquanto o sistema de justiça criminal condena um desses “traficantes” a pena de reclusão em regime fechado, outras centenas de adolescentes estão condenados a se tornarem, por falta de oportunidades sociais e das “facilidades” oferecidas pelo tráfico, em novos “traficantes” com destino à penitenciária.
Neste sentido, em face dos princípios constitucionais da proporcionalidade, lesividade da conduta e presunção da inocência, em casos que tais, o papel do magistrado não se resume mais a ser a “boca da lei”, mas o intérprete da Lei, com fundamento na hermenêutica constitucional, para a integridade do Direito enquanto instrumento indispensável e fundamental para a realização da Justiça.
Com efeito, no caso em análise, o acusado teria sido preso em flagrante por policiais militares com pedras de crack acondicionadas em duas caixas de fósforo e alegou que a droga era para uso pessoal. Em fase de instrução, foram ouvidos os mesmos agentes militares que efetuaram a prisão em flagrante, que apenas confirmaram os depoimentos já prestados na fase de investigação, ou seja, que procederam a abordagem e encontraram a droga em poder do acusado. Não restou provado, durante a investigação ou instrução processual, que o acusado tivesse o hábito da mercancia de drogas ou que estivesse, no momento da prisão, mercantilizando drogas.
Isto posto, por tudo mais que dos autos consta, não tendo se desincumbido o Ministério Público, por sua representante, do ônus da prova de que o acusado tivesse praticado atos de mercancia de drogas, JULGO IMPROCEDENTE a Denúncia e, pelo fato de ter informado o acusado que é usuário de crack, determino que se apresente ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) desta cidade para, querendo, submeter-se a acompanhamento por profissionais daquela unidade de saúde pública.
Sem custas e sem honorários.
Publique-se. Registre-se. Intime-se.
Após o trânsito em julgado, arquive-se.
Conceição do Coité, 09 de abril de 2014
Bel. Gerivaldo Alves Neiva
Juiz de Direito