Certa vez, um homem deu uma surra em uma mulher e o caso, estranhamente, virou chacota em uma pequena cidade do interior, como tantas outras. Todos riram e se divertiram. Homens, mulheres e adolescentes. Eu também ri, não nego. Depois, tempos depois, deixei de rir daquele caso e ele, talvez por vingança, não me fugiu mais da memória. Primeiro, porque o caso é violento e as pessoas se divertiram com ele e, segundo, porque depois que estudei Direito fico a pensar como se pode punir o que ainda não se sabe se vai acontecer.
O que me intriga ainda hoje é pensar no motivo que levou o homem a surrar a própria mulher. Não no motivo que foi dito por ele. Mais do que isso, no motivo que não foi dito. E é este não dito, o que não tem domínio e nem nunca terá, que me faz relacionar o Direito à surra que o homem deu na mulher. Daí, então, quando penso no Direito normatizado e proibitivo – preventivamente? - de quase tudo, na face horrorizada do homem movido pelo ciúme e inveja de ver uma mulher feliz, bem como na possibilidade de sua mulher ser cumplice da felicidade de outra mulher, meus pensamentos se misturam com códigos, leis e livros jurídicos em minha estante.
Bem antes da surra, dois rapazes e duas moças. Amigos de infância. Na mesma festa da padroeira, o primeiro beijo e início do namoro. A data do noivado foi combinada para o mesmo dia. Casamento também. Promessas de que um batizaria o filho do outro. Missa juntos aos domingos. Madrugadas de “carteado” inocente. Churrasco na casa de um e depois na casa do outro. Homens no futebol, mulheres na cozinha. Mulheres na novela, homens na sala. Tudo absurdamente natural e bom até aquela noite.
Naquele domingo fatídico - uma indisposição ou dor de cabeça? - uma rotina foi quebrada e apenas um casal foi à missa e ninguém ousou ocupar o espaço vazio no banco da Igreja. Não estavam lá em carne e osso, mas firmes e concretos na imaginação e desejo de todos. Para os outros, eles estavam ali. Na consternação depois da comunhão, em silencio, os pensamentos se entrelaçavam: onde estarão, o que fazem, o que houve, ajudai Senhor...
Na volta para casa, em silêncio, ela viu primeiro aquela cena e torceu para que ele não visse. Postou-se de lado, tomou-lhe a frente, atrasou o passo e de nada adiantou. Ele também viu, mesmo na penumbra, a outra mulher, a mulher do amigo deles, com outro homem que não era o dela, abraçados, beijados e apaixonados. Os dois viram e, apesar disso, não se olharam. Apenas viram e cada um sabia o que tinha visto. Novamente os pensamentos entrelaçados. O que ele viu? O que ela viu? Ele apertou a mão dela e nada disse. Ela sentiu-se amparada, apesar do coração apertado, e também nada disse. Seguiram, apenas.
Em casa, ao primeiro empurrão, a surpresa. Aos murros e chutes que se seguiram, a dor e as lágrimas: - Por quê? O que te fiz, homem?
Mais murros e chutes, sem palavras. A expressão de ódio, transtornado, embrutecido repentinamente. As portas fechadas e os vizinhos dormindo. Bastou entrar em casa e aquele não era mais seu homem. Ou agora era o que realmente sempre foi. O que era verdadeiro e o que tinha sido máscara? A única certeza, agora, é que o homem, fosse quem fosse, era real e batia com força e sem parar. Como não chorar de dor? Dor no corpo e na alma. Impossível reagir ou revidar. O que dizer amanhã? Perguntas virão. Mesmo que não verbalizadas, estarão na boca de todos. Perguntas como vômito. Se ao menos soubesse a razão...
Na manhã seguinte – melhor tivesse morrido –, olhos de quem não dormiu e também de quem apanhou muito. Marcas por todo o corpo, por dentro e por fora. Mesmo assim, café posto, voz fina e quase um sussurro: - por quê? A resposta sabida ou imaginada: - Para que jamais faças igual! Que te sirvas de lição! Para que jamais ouse! Para que sempre te lembres das dores em teu corpo. Para que jamais ouses pensar. Para que esqueças o que viu. Para que a cena se apague de tua mente.
Uma surra preventiva. A turba de homens comemorou. Ele é o melhor de nós. Corta o mal antes mesmo da raiz. Não permite, aliás, que a semente germine. Outras mulheres também riram. Todos os homens riram. Namorados e namoradas também riram. Noivos. Toda a cidade. Isto sim! Pronto, essa jamais ousará. Lembrará para sempre. Jamais abandonará seu posto de mulher fiel, obediente e honesta. Apanhou antes mesmo de errar! Que sirva de exemplo para todas!
No corpo, marcas e dores. Na alma, nada. Nem tristeza, nem alegria, nem saudade, nenhum sentimento desses que só se sente. Apenas silêncio e as dores sentidas e não sentidas no corpo. Sonhos tolhidos antes mesmos de serem sonhados. A felicidade entristecida antes de qualquer riso. Sabores, odores e tatos partidos antes de sentidos. A vida morta antes de vivida. Olhares cegados antes de correspondidos. Resta a vida nua e sem vida. Resta esta vida para ser vivida assim mesmo.
Na mente do homem, certamente, uma grande confusão. Minha mulher é minha. Meu amor é maior. Nada pode ser maior do que ele. Não posso permitir felicidade alheia maior do que a minha. Só a mim pode fazer feliz minha mulher. Sim. Importa o que dizem e o que pensam os outros. Não. Nada mais me importa. Isto tudo é insuportável. É insuportável ao homem a mistura do dito e o não dito. O pensado e o não pensado. O querido e o não querido. Bateu em quem, finalmente? Na mulher, na raiva, no ciúme, na inveja, em si mesmo? Perguntas difíceis e respostas mais difíceis ainda.
Agora lembra, também em busca de razões, como flashes rápidos, a cada murro e a cada chute, as imagens se misturando, ora reais, ora abstratas, em sua mente. Como se em transe, vê o homem que batia trocando de lugar e de papel com o homem que beijava e gozava na outra mulher; o homem que batia trocando de lugar e de papel com a mulher que amava e beijava o outro homem; a mulher que apanhava trocando de lugar e de papel com a outra mulher que amava e gozava com outro homem; a mulher que apanhava representando todas as mulheres do mundo amando e gozando com todos os homens do mundo. Enfim, quem era, finalmente, o homem que batia?
São passados muitos anos e continuo pensando sobre este caso. Penso no fato da surra, é claro. Penso muito também, talvez até mais, nas razões da surra e em todos os conflitos daí decorrentes. Por que razão um homem surra uma mulher que diz ser sua? Por que antecipa o irreal, a possibilidade sequer cogitada, o devir incerto, a ameaça do nada e, levado pelo ódio – que pensa ser amor – surra a mulher que diz ser sua? Por que se define o ainda não acontecido como crime ou código moral e por que se deve punir o não acontecido que alguém define como crime ou pecado? Ora, se o não acontecido ainda não aconteceu, como interpretá-lo? Por que punir a possibilidade do prazer? O que fazer, então, com os desejos e prazeres contidos, sob ameaça de surra? Por que se deve apanhar preventivamente?
Enfim, como afastar o Direito do crime e castigo e aproximá-lo da beleza, da alegria e do amor pelo outro? Como afastar o Direito do medo, da repressão, da própria Lei e aproximá-lo da compreensão, da alteridade e da tolerância? Este desafio é imenso e não sei se superável um dia: construir um Direito para o presente, para a vida, para os excluídos, para os que tem fome e sede de Justiça e que tenha como objetivo único proporcionar a felicidade das pessoas; construir um Direito, como dizia Roberto Lyra Filho, para ser o organizador e promotor social da liberdade; construir um Direito, como dizia Warat, “para fora do prato que o contém”. Este é o desafio!
Fonte:gerivaldoneiva.com * Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil)