A fala do ator, cantor e compositor Fábio Júnior, no Brazilian Day, no domingo, em Nova York, merece um tratamento que vai além do jocoso, como se tenta aqui e ali, à esquerda e à direita. É coisa mais séria, que guarda mais intimidade com os males do Brasil do que parece.
As elites intelectuais, ou as pessoas que em tanto se arvoram, odeiam o povo que há. Para elas, sempre será o vulgo, a brutalidade, a estupidez, a tolice. Na cabeça desses vigaristas — e insisto: pouco importa se direitistas ou esquerdistas; eles só são diferentes, no particular, na forma de silenciar a plebe rude —, a função da patuleia é carregar pedras para os monumentos. Os dois grupos teriam dado, se existissem então, um pé no traseiro de Shakespeare e suas banalidades humanas…
A forma contemporânea que as elites intelectuais de esquerdas têm de isolar o povo é tomar a estética como uma ética. O produto mais elaborado tecnicamente carregaria consigo necessariamente uma utopia, digamos, superior. O terreno da fruição, que é o da arte, passa a ser tomado como o das dissensões e disputas sociais. Os artistas considerados mais elaborados pela crítica serão necessariamente tomados como portadores das melhores respostas coletivas.
Fiquemos no caso em questão. Fábio Júnior é um artista popular. Já foi considerado, em programas de humor da TV, o preferido das domésticas — e havia naquilo certo riso de escárnio. Suas letras não costumam dialogar com uma certa tradição literária — não mais do que isso — buscada por Chico Buarque. O “eu lírico” das letras tem menos matizes, é mais direito, exibe menos relevos existenciais. Em suma: na música, Fábio Júnior não é Chico Buarque.
Cito Chico Buarque como o exemplo de uma espécie de coronelismo moral que toma conta das artes no Brasil. Alguns luminares são dotados de uma espécie de monopólio das boas intenções, pouco importa a porcaria que digam, em razão de suas escolhas políticas. Há três dias, tentando explicar o desastre da novela “Babilônia” — que só naufragou porque era ruim —, Fernanda Montenegro preferiu criticar o suposto conservadorismo do Brasil e produziu as seguintes pérolas:
“Babilônia, de Gilberto Braga, tem uma importância histórica muito grande. O beijo gay do qual tanto se falou não foi um beijo lambido, chupado, uma comendo a boca da outra. Foi a expressão de carinho de duas mulheres de 80 anos que há 40 estão juntas. Mulheres que representam uma elite. Não são ripongas. São bem-sucedidas e responsáveis. Habitam bem, comem bem. Um beijo carinhoso causou todo esse escândalo? Para mim, foi uma manta protetora, para distrair a atenção. Porque a novela foi histórica por outra coisa. Pela afirmação da negritude. Negros, mulatos, pardos, todos se afirmaram pela atitude. Ninguém era subserviente. Ninguém de uniforme, servil. O único de uniforme foi o motorista negro, amante da patroa, e assassinado no começo. Glorinha (Pires) ficou louca de desejo por um homem de outro estrato social. Essa foi a verdadeira revolução da novela. Nunca tantos negros se casaram com brancos, nunca houve tanta miscigenação. A negra que se forma advogada, o que tem sua barraquinha. Isso foi o que incomodou. O resto foi pretexto.”
Há aí uma tal soma de bobagens, de generalizações cretinas, de preconceitos enrustidos, que fica difícil saber por onde começar. Em primeiro lugar, hoje, o segundo maior contingente de cor de pele do Brasil é constituído de pardos, quase igual aos brancos, segundo dados do IBGE de 2010: 47,7% de brancos; 43,1 de pardos e 7,6% de negros. Antes de Gilberto Braga, o país misturou os brasileiros. A realidade brasileira, Fernanda, é diferente da americana, onde há apenas 13% de negros, já considerados neste grupo os mestiços. Nunca é tarde para estudar.
Sobra a sugestão de que as duas lésbicas deveriam ter sido aceitas porque, afinal, exibem os padrões da Zona Sul.
A observação, por sua vez, entra em choque com a bobagem racialista, jamais evocada pelos críticos da novela — e notem que foi o povo que se divorciou dela, justamente aquele formado por uma maioria de mestiços. Finalmente, noto que a atriz atribui certa, como posso chamar?, superioridade viril ao negro uniformizado que pega a patroa branca. Bem, nesse caso, já deixamos o terreno da sociologia para entrar no do fetiche.
Os esquerdistas e progressistas no geral podem ser os donos da pauta da imprensa, podem ser os donos dos meios influentes de divulgação de ideias, podem ser os donos “da arte”, mas não são os donos do povo. Independentemente do que digam ou divulguem, há uma realidade viva em construção, que consegue, de vez em quando, furar o muro da vergonha das placas de aço.
Ninguém precisa trocar os versos de Chico Buarque pelos de Fábio Júnior. Ninguém precisa trocar o preferido das patroas — sobretudo das que se banham no mar do Leblon — pelo preferido das domésticas. Nem Chico produz uma ética nem Fábio Júnior. São apenas dois compositores e cantores. Um saudado pelo crítica — às vezes, por maus motivos; outro, atacado — às vezes, também por maus motivos.
Chico Buarque, Caetano Veloso ou quantos outros vocês queiram incluir aí, inseridos à esquerda no debate cultural, não deveriam, por pudor, jamais misturar o prestígio que angariaram no terreno da estética para tentar nos vender uma ética — especialmente quando, no caso de Chico, ela se confunde com o apoio descarado a uma elite corrupta e truculenta que hoje toma conta do estado brasileiro. Caetano é um pouco mais matizado, mas se deixou fantasiar de black bloc num momento em que o país, sem querer parecer meramente retórica, tem é de tirar a máscara.
Fábio Júnior nunca ganhou um tostão com proselitismo político. Considerando o trabalho que faz, é possível que mais tenha dissabores do que ganhos com o discurso que fez no Brazilian Day. Não confundiu a sua opinião — muito sensata: ele atacou a roubalheira, certo? Não tentou justificá-la, como Chico Buarque — com os seus versos; não procurou o apoio irrestrito que lhe conferem os meios de comunicação para tentar vender uma tese política.
O Brasil, meus caros, mesmo quando se manifesta lá em Nova York, está mudando. Há uma gente nova na rua, para desespero dos que se queriam donos da opinião.
Vejam lá o cartaz que reproduz uma frase deste escriba. Os petistas adorariam que fosse exibido por um louro, de olhos azuis. Assim, eles, que se consideram donos dos negros, poderiam fazer seu proselitismo vigarista, me associando a uma elite branca que estaria contra o povo.
Mas não! Quem porta o cartaz é um negro. O negro em nome dos quais procuram falar Fernanda Montenegro e Chico Buarque. Para o delírio dos brancos de esquerda da Zona Sul.
Esse país, felizmente, está chegando ao fim.
Por Reinaldo Azevedo(Veja)