Mulheres quebram o silêncio e denunciam a violência sofrida dentro de casa. Homens são presos e mantidos na cadeia por agredirem suas companheiras. Cada vez mais frequentes, situações assim rompem com o que acontecia em décadas passadas. São avanços creditados à Lei Maria da Penha, que completa dez anos continuando a enfrentar desafios. O Brasil ainda registra um alto índice de homicídios nesse gênero, com uma mulher morta a cada duas horas.
Em fevereiro de 2015, ela foi baleada e esfaqueada pelo pai de sua filha e por outros dois homens, em Jaboatão dos Guararapes, no Grande Recife.
A manicure ficou 40 dias internada, sendo 20 deles em coma. Ela ficou com o rosto desfigurado, perdeu a visão de um dos olhos. Já passou por quatro cirurgias e ainda tem ao menos outras três para fazer.
O acusado, Ivson Thiago do Chile Júnior, foi preso pouco mais de um mês depois do que aconteceu e, segundo a polícia, assumiu o crime.
Ela não sabe ao certo por que ele quis matá-la. Lúcia conta que ele não gostou quando ela entregou a guarda da filha para a mãe dela.
Mas a ameaça de morte veio depois que a manicure deu o telefone da mãe dele para um traficante, que tinha ido em sua casa cobrar uma dívida de droga.
Lúcia prestou queixa na delegacia e conseguiu que a Justiça o proibisse de se aproximar dela. A medida protetiva não impediu que ela fosse atacada.
A manicure diz que ainda recebe ameaças dele, por meio de conhecidos. O recado: ele vai matá-la quando sair da prisão.
Com medo, a manicure não tem endereço fixo; muda de casa a cada seis meses. Espera terminar de fazer as cirurgias para sair de Pernambuco.
Quero sair do Estado, ir embora, começar minha vida em outro lugar
Com a palavra, Maria da Penha
"Qualquer lei estando só no papel é uma lei ineficaz, ou seja, não funciona. O que a Lei Maria da Penha precisa é ser devidamente implementada. Os seus equipamentos (centros de referência, delegacia da mulher, juizado da mulher, casa abrigo) devem ser criados e estruturados, e os profissionais que trabalham nesses locais devem ser constantemente capacitados para que a mulher em situação de violência seja prontamente atendida e amparada pelo Estado.
Qualquer mudança na lei agora representaria um caminho ao enfraquecimento de uma norma tão bem estruturada e que, se for devidamente cumprida, beneficia e possibilita à mulher e a seus filhos saírem da violência doméstica e familiar a qual estejam submetidas.
Nós precisamos unir forças para que, juntas, possamos garantir um futuro sem violência para nossas descendentes."
Dados mais recentes revelam que ao menos uma mulher é assassinada no Brasil a cada duas horas.
Lúcia está viva, mas correu um sério risco de morrer. Quando a manicure pernambucana foi ameaçada pelo pai de sua filha, procurou socorro. Sabia que a Lei Maria da Penha poderia ajudá-la. Denunciou o caso à polícia e conseguiu uma determinação da Justiça para que ele não chegasse perto dela.
Não foi suficiente.
Desobedecer uma medida protetiva não é crime no país, explica Valéria Scarance, promotora de Justiça do MP-SP (Ministério Público Estadual de São Paulo) e coordenadora da Copevid (Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher).
"Se não é crime, a pessoa não pode ser presa em flagrante. Quando a vítima relata que houve desobediência à medida de proteção, alguns delegados entendem que é crime e pedem a prisão preventiva do agressor", diz Scarance.
O problema, aponta ela, é que entre o pedido ser feito à Justiça e a prisão ser concedida e aplicada, a mulher fica exposta ao perigo.
A criação de um tipo penal específico de "desobediência à medida protetiva", no âmbito da Lei Maria da Penha, é uma das melhorias que ela sugere que a legislação deva ter para tornar mais rigoroso o combate à violência contra a mulher.
A promotora de Justiça afirma que ampliar e aperfeiçoar as medidas protetivas "seriam um instrumento para salvar vidas".
Outra mudança na lei sugerida por ela é incluir de forma clara que as medidas de proteção são autônomas, ou seja, "não dependem de inquérito, investigação criminal e processo" para serem concedidas.
"Muitas mulheres não suportam o peso de serem acusadoras de seus parceiros. Condicionar a proteção a uma postura da vítima de processar o agressor faz com que ela desista da proteção para não enfrentar um processo."
Segundo Scarance, há uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) que considera essas medidas como autônomas, mas isso não tem poder de lei. "Há juiz que entende que elas são autônomas e há juízes que não veem assim."
"Incluir [na Lei Maria da Penha] essa possibilidade expressa de proteção mesmo que a vítima não registre boletim de ocorrência poderia salvar muitas vidas. Quando as mulheres acionam o sistema de Justiça, elas querem sobreviver; muitas vítimas desejam unicamente viver em paz."
Para a promotora, a Lei Maria da Penha é um "marco histórico na defesa das mulheres".
Há dez anos não se falava em violência contra a mulher; as mulheres não denunciavam a violência [que sofriam]. Houve uma conscientização nacional, mas ainda temos muito para evoluir. Estamos atravessando uma ponte.
Especialistas no combate à violência contra a mulher concordam que houve avanços --embora muito longe do ideal-- nos últimos dez anos em relação ao tema, principalmente nas áreas da segurança e da Justiça, com a criação de delegacias e juizados especializados e centros de atendimento à mulher.
No Brasil, 8% das cidades contam atualmente com alguma delegacia ou núcleo dedicados a ocorrências envolvendo mulheres. Segundo a Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, ainda há Estados que não possuem promotorias e varas especializadas.
Para a advogada Leila Barsted, uma das diretoras da Cepia --a entidade fez parte de um grupo de organizações que elaborou o anteprojeto da Lei Maria da Penha--, a legislação não foi totalmente aplicada nos últimos dez anos.
“O foco tem sido na aplicação [da lei] na área da segurança e da Justiça. Esse enfoque é importante porque a mulher agredida tem que ter um bom acolhimento na área da segurança, da Justiça, nos centros de referência. [...] Mas há uma parte [da legislação] que é fundamental ser implementada, na área de educação, na área cultural, de mudança de padrões culturais violentos. É preciso levar a discussão para o sistema de ensino."
Na opinião da advogada, o combate à violência contra a mulher passa, necessariamente, pela educação, por uma mudança de cultura, pela "difusão grande de que homens e mulheres têm os mesmos direitos". "É um processo longo. Mudanças culturais são lentas e significam investimento em educação."
Barsted afirma que os investimentos cabem aos governos, mas destaca que a sociedade também tem o seu papel. "É tarefa de cada cidadão não apenas seguir esses princípios [de igualdade entre homens e mulheres] mas também de transmiti-los para as novas gerações."
A ativista chama a atenção ainda para a necessidade de todos e todas nós sermos solidários com as mulheres agredidas. "Vemos manifestações nas redes sociais de uma parcela da sociedade ainda extremamente intolerante com as mulheres, insensível ao sofrimento delas."Fonte:Uol