A decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que anulou a sentença do ex-presidente da Petrobras Aldemir Bendine na terça-feira (27) abriu um precedente que poderá beneficiar alvos da Lava Jato que vão do ex-governador Sérgio Cabral, no Rio, ao núcleo petista liderado pelo ex-presidente Lula e integrado pelo ex-ministro José Dirceu no Paraná.
Dois desdobramentos ocorreram já nesta quarta-feira (28). Primeiro, o ministro Edson Fachin determinou que uma ação penal referente ao Instituto Lula retroceda etapas. Logo depois, decidiu que o tema deve ser analisada pelo plenário do Supremo.
A Segunda Turma do STF decidiu anular a condenação de Bendine sob a justificativa de que as defesas apresentaram suas alegações finais —a última oportunidade para as partes apresentem seus argumentos antes da sentença— nos mesmos prazos, sem distinção entre réus delatores e demais réus acusados.
A corte viu nessa prática um cerceamento ao direito de defesa, porque os delatores trazem acusações que, ao final, não podem ser rebatidas.
Fachin decidiu levar o tema para o plenário. Desta vez, o pedido de habeas corpus enviado foi o do ex-gerente de Empreendimentos da Petrobras Márcio de Almeida Ferreira, também condenado por corrupção e lavagem.
Em sua decisão, o ministro disse ser preciso preservar a segurança jurídica e a estabilidade das decisões do Supremo, uniformizando o entendimento das duas turmas existentes.
O procedimento relativo às alegações finais foi repetido ao longo do período em que Sergio Moro conduziu os processos como juiz federal em Curitiba.
Ele também foi comum nos processos que geraram condenações somadas de mais de 200 anos de penas a Cabral na Lava Jato do Rio, comandada pelo juiz federal Marcelo Bretas.
Embora questionado pelas defesas, esse entendimento nunca tinha sido visto como uma fragilidade nos processos a ponto de gerar anulações de sentenças.
Agora, caso os ministros do Supremo decidam que outros réus merecem esse mesmo benefício, processos já encerrados na primeira instância, com réus em estágio avançado de cumprimento de pena ou até beneficiados por indulto também podem ser revistos.
Nos casos que envolvem Lula, Fachin já determinou a volta para a fase das alegações finais da ação penal a que ele responde em Curitiba sob acusação de receber da Odebrecht um terreno destinado ao Instituto Lula. Com isso, esse processo, que já estava pronto para ser sentenciado, deve levar mais tempo.
Além disso, a defesa de Lula entrou com um habeas corpus no Supremo nesta quarta para que seja estendido a outros processo do ex-presidente a medida que favoreceu Bendine.
A condenação do petista no caso do sítio de Atibaia (SP) seguiu roteiro semelhante ao processo do ex-presidente da Petrobras.
A PGR (Procuradoria-Geral da República) ainda não mensurou quantos processos podem ser afetados pelo novo entendimento do Supremo.
Questionada pela Folha, informou que não faria esse levantamento e que a determinação da corte, por ora, só se aplica ao caso de Bendine, sem repercussão geral.
A equipe da procuradora-geral, Raquel Dodge, se reuniu para estudar as possibilidades de recurso.
Uma das possibilidades avaliadas na PGR é requerer aos ministros do Supremo que um processo só possa ser revisto se a defesa do réu pediu, ainda na primeira instância, para se manifestar por último —tendo sido negado. É isso que ocorreu com Bendine.
Outra alternativa seria tentar restringir as anulações a casos em que o delator efetivamente apresentou em suas alegações finais alguma prova ou acusação nova, não tratada nas fases anteriores da tramitação da ação penal —e, portanto, não conhecida formalmente pelos demais acusados.
Entre os casos já julgados que podem ser eventualmente revistos, uma situação inusitada envolve o ex-senador pelo Distrito Federal Gim Argello. Depois de mais de três anos preso no Paraná, ele foi solto em junho com a concessão de indulto —benefício dado pela Presidência da República a presos por crimes não violentos.
A rigor, também em seu caso a Justiça Federal fixou prazo de alegações finais igual para delatores e delatados e poderia haver uma revisão da condenação, expedida em outubro de 2016. No caso de Bendine, o Supremo não anulou todo o processo, mas determinou que ele voltasse para antes da fase de alegações finais na primeira instância. O ex-presidente da Petrobras já havia até sido julgado em segundo grau.
Como a delação premiada foi uma das bases das investigações da Lava Jato, a maioria das ações julgadas no Paraná envolvem delatores e delatados no mesmo processo. A força-tarefa do Ministério Público Federal afirma que 32 das 50 sentenças já expedidas envolviam réus, com acordos de colaboração firmados com autoridades, que apresentaram alegações finais junto com suspeitos delatados.
A minoria que não se enquadra nesse roteiro trata, por exemplo, de acusações dos primórdios da operação, antes dos primeiros acordos de delação. O ex-deputado Eduardo Cunha, preso desde 2016, é uma exceção: foi julgado individualmente por Moro em um caso desmembrado que começou a ser analisado na época em que ele tinha foro especial.
No DF, Cunha foi condenado em primeira instância, em 2018, por desvio de recursos da Caixa. Nesse processo, o juiz responsável, Vallisney de Souza Oliveira, também fixou prazo comum para alegações a todos os réus, entre eles três delatores.
Algumas das sentenças mais antigas que poderiam ser revistas no Paraná incluem casos de condenados que posteriormente fizeram acordos de delação e que hoje não teriam mais interesse em recorrer das penas aplicadas.
O ex-ministro Antonio Palocci, condenado por Moro em 2017, saiu da cadeia no ano passado após firmar acordo com a Polícia Federal, e agora está no regime aberto, em que a restrição maior é permanecer em casa à noite e nos finais de semanas.
Pelo teor da decisão do Supremo, Palocci também poderia se beneficiar de uma revisão, assim como outro ex-expoente petista, o ex-tesoureiro João Vaccari, que é um dos mais longevos presos da Lava Jato. Está detido no Paraná desde 2015.
Nos últimos anos, políticos e empresários alvos da Lava Jato já haviam levantado na primeira instância a controvérsia decidida pelo Supremo.
Em ação no DF em que Lula e o banqueiro eram acusados de participar de um esquema para atrapalhar investigações, o juiz Ricardo Leite determinou em 2017 que primeiro apresentassem alegações o ex-senador Delcídio Amaral e um assessor, ambos colaboradores. Em seguida, foi a vez de os demais réus. Lula e Esteves foram absolvidos.
“Já tínhamos essa estratégia em vários casos, com êxito. A importância desse julgamento é que foi no Supremo. O amplo direito de defesa pressupõe o direito de o réu falar por último”, afirma o advogado de Esteves, Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, defensor de outros réus da Lava Jato.
Em nota divulgada nesta quarta-feira, a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba defendeu que o Supremo limite a aplicação desse entendimento em casos futuros, de forma "a preservar os trabalhos feitos por diferentes instâncias em inúmeros casos de acordo com a lei e entendimento dos tribunais até então vigente".
Em rede social, o procurador Roberson Pozzobon, integrante da equipe de investigação, disse: "Como fica a situação, na lógica dessa decisão do STF, do réu NÃO colaborador que confessa seus crimes? Por dizer a verdade ele também perderia o direito de apresentar suas razões finais ao mesmo tempo que os demais réus?"
A situação de réus que colaboraram sem ter acordo de delação homologado de fato não está esclarecida. Essa circunstância também foi frequente na Lava Jato, inclusive no caso do tríplex de Guarujá (SP), pelo qual Lula foi condenado e cumpre pena.
O professor de direito da Universidade Mackenzie Edílson Vitorelli, que é procurador da República em São Paulo, diz que a decisão da corte cria uma espécie de terceiro tipo de parte em um processo, além da acusação e defesa, em uma regra "que não está escrita em lugar nenhum".
Para ele, a decisão decorre de uma "filigrana processual" e é desproporcional e potencialmente nefasta.
"Colaboração premiada não serve só para a Lava Jato. Serve para tráfico de drogas, para crimes violentos, casos do PCC, um monte de casos."
Presidente do Instituto de Garantias Penais (IGP), o criminalista Ticiano Figueiredo afirma que todos os atos capazes de influenciar o convencimento do juiz devem estar necessariamente sujeitos aos princípios da ampla defesa e do contraditório, para que não só a acusação, como também os advogados dos réus, “possam contribuir igualmente para formar a convicção do julgador”.
“Se um delator fala por último sem que a defesa seja ouvida, a ordem do processo se inverte e a balança da Justiça passa a pesar para o lado da acusação. A decisão do STF é importantíssima ao reconhecer, mais uma vez, que não há processo justo sem paridade de armas, e que ninguém pode ser condenado sem o direito de se defender amplamente”, comenta.