No centro das investigações que levaram à apreensão de dinheiro na cueca de um dos líderes do governo, as emendas parlamentares registram uma execução recorde na gestão de Jair Bolsonaro (sem partido).
Foram R$ 17,2 bilhões pagos até meados de outubro, o que já representa um crescimento de 67% em relação a todo o ano de 2019. O valor é o mais alto na série compilada pelo Senado com início em 2015 (e atualizada pela inflação).
Alvo de interesse dos congressistas, as emendas possibilitam aos deputados e senadores decidirem o destino de recursos do Orçamento federal e, assim, enviar dinheiro a redutos políticos.
Ao mesmo tempo, elas reduzem o poder do Executivo sobre o Orçamento. As emendas são divididas em individuais, de bancada estadual, de comissão ou do relator.
Se até 2019 as emendas executadas representavam uma média de 5% das despesas discricionárias (não-obrigatórias) do Tesouro Nacional, em 2020 esse percentual foi praticamente triplicado e representa 15% dos gastos opcionais previstos para o ano.
O percentual cresce para 26% caso a comparação seja feita com os gastos discricionários até setembro, último dado disponível.
O alto volume de execução das emendas parlamentares neste ano se dá, principalmente, por quatro motivos.
O primeiro foi que em abril o governo permitiu excepcionalmente que os parlamentares realocassem para o combate à Covid-19 emendas que tinham apresentado para outras áreas, o que garantiu uma rápida execução em virtude da necessidade do gasto emergencial na pandemia.
Em segundo lugar, há em anos eleitorais uma natural corrida para execução das emendas nos primeiros meses com o objetivo de aumentar o capital político dos parlamentares em seus redutos, além de escapar da vedação de realização de transferência voluntária de recursos da União nos três meses que antecedem a disputa.
Terceiro, há uma dinâmica da relação entre Bolsonaro e o Congresso que se caracterizou pela fragilidade política do governo em um primeiro momento, quando tentou governar sem interlocução e até em oposição aos partidos, e a migração, a partir do momento em que se sentiu ameaçado de impeachment, para uma aliança com o chamado centrão, o grupo de partidos médios de centro e de direita que agora lhe dá sustentação no Congresso.
Por fim, e não menos importante, o Congresso vem se aproveitando do enfraquecimento político dos últimos governos --Dilma Rousseff (PT), Michel Temer (MDB) e Bolsonaro-- para ampliar a fatia das emendas impositivas, ou seja, aquelas de execução obrigatória.
Até 2015, os 594 congressistas apresentavam as suas emendas ao Orçamento, mas a decisão sobre a execução ou não era do Executivo, o que resultava em um jogo de pressão entre as duas partes --o Palácio do Planalto só liberava verbas para as emendas se obtivesse apoio para suas pautas no Congresso e os parlamentares só votavam com o governo mediante liberação das verbas.
No ano em que teve início a derrocada política que levou ao impeachment de Dilma, o Congresso (em iniciativa capitaneada inicialmente pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha) começou a, paulatinamente, tornar obrigatória a execução das emendas. Primeiro, as individuais, apresentadas isoladamente por cada congressista, e que hoje estão em R$ 15,9 milhões por parlamentar. Depois, as de bancada.
Em 2019 o Congresso ampliou a fatia das emendas impositivas, tornando obrigatórias também as das comissões permanentes e as feitas pelo relator-geral do Orçamento. Bolsonaro vetou a medida e o Congresso só não reverteu a decisão após acordo que, na prática, deixou deputados e senadores com uma fatia mais gorda de recursos.
Com isso, o próprio governo intensificou a negociação com parlamentares ao longo dos últimos anos para captar recursos das emendas.
O Ministério da Justiça, por exemplo, formula uma cartilha anual para sugerir parlamentares a destinarem valores a ações que vão de compra de caminhonetes para transportar presos (R$ 160 mil) à implantação de sistema de rádio para a polícia em fronteiras (R$ 9,6 milhões).
Sérgio Praça, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas), afirma que o cenário das emendas impositivas, somado às restrições orçamentárias, gera necessidade de mais diálogo entre Executivo e Legislativo. "A negociação com o Congresso sempre foi importante. Mas quanto mais escassos os recursos, a importância disso aumenta", afirma.
A possibilidade de barganha pode ser feita dos dois lados, já que o Executivo não é obrigado a executar emendas de comissão de Câmara e Senado, além das apresentadas pelo relator-geral do Orçamento.
Só o Ministério do Turismo, por exemplo, tem neste ano R$ 13,5 milhões em emendas apresentadas pelas comissões do Congresso para diversas ações no país.
Ricardo Volpe, consultor de Orçamento da Câmara dos Deputados, afirma que as emendas dão força política aos parlamentares. Obras com recursos de emendas podem não ser sentidas em grandes cidades, mas fazem diferença significativa em pequenos municípios (mais da metade deles têm menos de 50 mil habitantes). "É assim que eles [parlamentares] conseguem se reeleger", diz.
Para Volpe, as regras atuais deveriam ser rediscutidas porque favorecem o descumprimento dos princípios da impessoalidade e da isonomia, ao conferir uma vantagem para os já eleitos.
O aumento do poder dos congressistas é um dos motivos apontados pelo Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar) para explicar a redução no número de deputados e senadores que, neste ano, disputam prefeituras pelo país.
De acordo com o Diap, o incremento das emendas tornou mais interessante, politicamente, a permanência no Congresso em vez da disputa por prefeituras, boa parte delas com dificuldades de caixa.
As emendas também têm histórico de corrupção. No episódio mais recente, a PF apreendeu neste mês dinheiro vivo dentro da cueca de Chico Rodrigues (DEM-RR), então vice-líder do governo Bolsonaro no Senado. Os valores suspeitos teriam vindo de desvio de emendas parlamentares do senador apresentadas para o combate à Covid-19 em Roraima.
Paralelamente ao aumento da execução das emendas parlamentares, há uma disputa ainda não resolvida entre o grupo do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o centrão pelo controle da comissão de Orçamento e da própria Câmara, que terá eleições para seu comando em fevereiro.
A Comissão de Orçamento, formada por deputados e senadores, é responsável pela discussão da proposta Orçamentária do governo e pela organização das emendas apresentadas pelos parlamentares ao texto.
A divergência impediu não só a instalação da comissão, como a aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias, que deveria ter sido votada no primeiro semestre para servir como base para a análise do Orçamento-2021.
Maia quer emplacar no comando da comissão de Orçamento o correligionário Elmar Nascimento (DEM-BA). O centrão, que tem como pré-candidato à Presidência da Câmara o deputado Arthur Lira (PP-AL), trabalha para colocar na função a deputada Flávia Arruda (PL-DF).Fonte:Folha