Os campos de futebol em áreas centrais e principalmente nos bairros de Serrinha foram sem dúvida a maior opção de lazer da sua juventude masculina, nos anos 70 e 80. Naquela época, era obrigatório, praticamente, que as comunidades tivessem um, se não de dimensões oficiais, que suportasse 10 na linha, ao menos o tipo society, que pegava entre seis e oito jogadores, mais o goleiro.
O ACEC, tradicional equipe amadora local, tinha o seu campo localizado às margens da avenida Antonio Carlos Magalhães, acesso à estrada de Coité, em um terreno onde por muitos anos funcionaram transmissores e estúdios da Rádio Difusora (atual Continental). Perto dalí, o Campo do Clube, como se chamava popularmente a conhecida praça esportiva da Associação Cultural Serrinhense (ACS), em frente ao Estádio Mariano Santana, era ainda mais concorrido.
Os bairros do Cruzeiro, Rodagem e Matadouro contavam cada um com seu campo próprio vinculado ao time local, filiado à Liga Serrinhense de Desportos Terrestres e que disputava o campeonato amador da cidade - Cruzeiro, Bahia e Santa Fé, respectivamente.
No largo onde hoje existe a praça Morena Bela, por muitos anos o Colégio Estadual Rubem Nogueira (o Ginásio) realizava as aulas de educação física dos seus alunos, mas essa não era a única serventia daquele terreno de terra avermelhada. Às tardes, adolescentes e adultos de toda parte se encontravam ali para o baba. Muito grande, o espaço abrigava dois campos de futebol. Dia de domingo aconteciam jogos de campeonato.
O Centro Social Urbano, equipamento do Governo do Estado, surgiu no final da década de 70 em um terreno que abrigava o campo do Cacetinho. O apelido se devia às brigas que sempre encerravam os babas de domingo. Transformou-se no melhor da cidade, por ser plano e ter uma areia que suavizava as quedas. Aquele espaço, que era comandado pelo professor de educação física mais famoso da história da cidade, Paulo Sardão (se não for chamado pelo apelido, ninguem lembra de quem se trata) fez com que a região do CSU se tornasse um celeiro de craques, revelando Nicaninha, Chocolate e tantos outros.
Havia outros campos de grande porte na Cidade Nova e na Vaquejada. Também campinhos alternativos como a "Lixa", no bairro da Bomba; o do largo da Igreja Nova; o da Serraria, na rua Basílio Cordeiro; o da Federação, na Rua Nova e o da Leste, vizinho à Estação Ferroviária. Sem falar nos "gramadinhos", geralmente áreas de antigas lagoas, como o do bairro das Abóboras, e o do final do Beco da Galinha Morta, próximo à linha de trem.
As próprias escolas públicas contavam com uma área que os alunos improvisavam como campo. Servia para o baba durante o recreio, logo depois do "mingau" da merenda. Fora do horário de aula, os próprios estudantes e os meninos da vizinhança pulavam o muro e faziam a sua pelada. Dois exemplos fortes: as escolas Áurea Nogueira e Graciliano de Freitas.
Evidente, tudo isto faz parte do passado. Nas escolas, talvez nem recreio exista mais. Os campos de bairros, o predador mercado imobiliário e a insensibilidade governamental fizeram sucumbir esses espaços, que tanto contribuíram para a juventude da cidade abençoada por Senhora Santana. Todas essas terras foram ocupadas por imóveis residenciais e comerciais. O Município não conseguiu executar uma política pública de preservação. Poderia ter desapropriado ao menos alguns desses terrenos e transformado-os em importantes áreas de entretenimento das futuras gerações.
O CAPUCO
Não tão famoso como os demais mencionados, mas nem por isto de menor importância na memória de dezenas de serrinhenses, o Capuco foi um dos desses "templos sagrados" que merecem ter a sua história resgatada, escrita e imortalizada, pois foi marcante para toda uma geração. Senhores que hoje se encontram na faixa acima dos 50 anos de idade não esquecem deste campo, que nasceu em 1970 e marcou época. Como os demais, era localizado em propriedade privada ocupada pelos boleiros, que resistiam a correrias e ameaças dos donos dos terrenos, até vencê-los pelo cansaço.
O Capuco surgiu em um pedaço de terra da fazenda onde hoje está assentado o conhecido bairro de Oséas, homenagem ao falecido proprietário, um dos maiores da cidade, ocupando uma extensa área que começa nos fundos da avenida Manoel Novaes, no trecho do antigo Quartel da PM, em frente ao ponto de Araci, e vai até o Alto da Colina Sagrada, onde os peregrinos participam, toda Quinta-Feira Santa, da maior e mais famosa das procissões que acontecem no interior da Bahia.
Segundo conta Agamenon Sales, o Agá, especialista em "história do Capuco", partiu do seu amigo Bizagão, zagueiro raçudo e viril, mas de boa técnica, que chegou a vestir a camisa da Seleção de Serrinha nos anos 80, a idéia de capinar o mato em torno de uma pequena "clareira", nas terras de Oséas, para fazer ali um campinho de bola. O país vivia a expectativa do início da Copa do Mundo do México.
O grupo de amigos "batia ponto" diariamente, a partir das 19 horas, nas imensas calçadas do armazém de Zé Reis. Em uma daquelas noites enluaradas, Bizagão apresentou a proposta. Detalhe: a tal clareira existia e se mantinha mais ou menos limpa, diferentemente dos arredores, porque era onde uma jega se "espojava", conta o bom jogador de linha e também goleiro Agá, principal fonte dessa história.
Acatada a sugestão, no dia seguinte o próprio Bizagão, Agá e seu irmão Plínio, além de Nilton e Val Capão - pegaram as enxadas dos pais e fizeram o trabalho. Pode ser que um ou outro desbravador tenha participado da "obra", mas ninguém se recorda de nomes. Arrancada a vegetação, não foram colocadas traves como se conhece no improvisado campo de bola. Utilizou-se dois pedaços pequenos de madeira em cada gol. As condições eram precárias. O campo tinha declives, valetas e pedras.
Mesmo assim, nascia o Capuco, assim denominado porque a Cooperativa Mista dos Agricultores de Serrinha, cujo galpão era próximo, processava milho e mandava carroceiros jogar os sabugos naquelas redondezas. O campo representou a alegria de dezenas de jovens por mais de uma década, mesmo rodeado de espinhosas "geremas", como popularmente chamada no sertão uma das várias espécies da planta jurema, responsáveis por furar muitas bolas de couro da rapaziada.
Além dos já citados que puseram a mão na enxada, faziam parte do que se chama "primeira geração" do Capuco os irmãos de Nilton (Vavá e Nenen), Galegão da Sucam e o irmão Galeguinho, Massimino Caceteiro, Raimundinho, Cebola Podre, Puciano Nariz de Ferro, Tarzan Apolo Nove, Cocota, Zé Carlos Sapateiro, Faninho, que mais adiante se tornou um importante diretor do Vitória (Vitória profissional, o tradicional clube de Salvador), entre outros.
Acontece que Oséas, o dono das terras, não gostou nada da "ocupação", por várias razões. Ele já vivia às turras com aqueles moleques, que invadiam a fazenda para atacar seu milharal e também os pés de goiaba. Quando começaram os babas, os peladeiros afrouxavam e danificavam uma cerca, que pulavam para pegar a bola quando alguém chutava distante do gol. Além disso, também tomavam banho no açude da fazenda.
Descrito como um sujeito alto, galego, que não corria, mas caminhava muito ligeiro, Oséas de vez em quando surpreendia a turma, chegando sem ninguém ver. "Era perna pra que te tenho", diz Agá. Para desestimular a bagunça no açude, o fazendeiro providenciou um jacaré, que evidentemente, fez quase todo mundo desistir de entrar na água. Mas o baba ele não conseguiu acabar, muito pelo contrário. Diante da persistência, desistiu de expulsar o pessoal e o Capuco se consolidou.
Agá e sua trupe chegaram a montar na época o Palmeirinhas, que mandava jogos ali, contra adversários de outros bairros. O fardamento era uma camisa branca que de tão larga poderia vestir mais de um atleta, com escudo e número pintado. A fama do novo campo foi aumentando e despertou o interesse da Cooperativa de Agricultores - aquela que lançava sabugos do milho processado na área da fazenda. Seus diretores resolveram fazer melhorias significativas ali, certamente em entendimento com o proprietário do terreno. O Capuco passou a ter dimensões oficiais e, finalmente, traves de verdade.
O objetivo da Cooperativa era atender ao seu time de futebol, formado pelos funcionários, que precisavam de um campo local estruturado para treinamento. O pesquisador Agá diz que essa experiência não durou muito tempo, talvez menos de um ano apenas. O Capuco voltou a enfrentar as antigas dificuldades de manutenção e até ficou abandonado por um período.
SEGUNDA E TERCEIRA GERAÇÕES
Os primeiros capuqueiros utilizaram aquele campo por pelo menos cinco anos, quando alguns deles foram migrando para outros bairros, conseguindo emprego ou mudando de cidade. Entra em cena, neste momento, por volta de 1977, um outro grupo de jovens, comandados por André Shuila (irmão de Agá e Plínio), Rui Berg (irmão de Nilton, Vavá e Nenen), Dé (o filho do violeiro Ribeirinho), o pescador Dão Sujeira, entre outros, formando uma "segunda geração" a desfrutar do Capuco por um certo período.
Dé, hoje radialista da Regional, famoso na região, de nome artístico José Ribeiro, lembra que em um dia inteiro de sábado, eles e outros amigos deixaram a feira livre de lado para tirar mato e pedras do terreno que se encontrava há algum tempo sem futebol. Não conseguiram tirar todo o pedregulho, mas o campo ficou mais ou menos pronto para a reestreia, com um animado torneio, no domingo.
Jiorlando e o irmão Batata, Edinho e Delmar, César (ainda apelidado de Bicudo, mais tarde, Bigu) e seus irmãos Valzinho e Nati, o pequeno e franzino Mirinho (irmão de Dé), Geobaldo, Eugênio, Teco (hoje, do Buteco), Quinquinho, Paulinho, Luciano, Ailton, Renan, Carlos, Henrique, Adelson, Gel, os irmãos Pelé e Pelezão, entre outros, outros, formavam o sagrado baba de todas as tardes. Uns frequentavam o campo todos os dias, outros de vez em quando.
Naquele mesmo período, enquanto isso, um terceiro e último grupo, a "geração derradeira", já estava a postos. No início da tarde, sol a pino, corriam atrás da bola capuqueiros mirins como os irmãos Binho e Dó (que moravam tão perto que apenas precisavam pular uma cerca no fundo de casa para alcançar o campo), os também manos Didi e Vá, Tova (irmão de Dé e Mirinho), Otto (irmão de César e Valzinho), Pelé (irmão de Teco), Macaco, Nelson "Cobra", Caçolão e outros meninos. Outros ainda mais jovens, como Aléx "Chocó" e Jivanildo (irmão de Vavá, Nilton, Nenen e Rui Berg) foram chegando depois, em tempo de ainda bater alguns babas no Capuco.
Esses meninos brincavam geralmente pela manhã, mas , fominhas, faziam uma espécie de preliminar para os mais velhos, logo depois do almoço. Quando demoravam de encerrar o "esfria sol", Rui Berg tratava de dar um ponto final, invadindo o campo e mandando um tremendo bico na bola, que ia parar bem longe. Tomava um "coque", ou cascudo, quem continuasse incomodando.
Naquela altura, o capuco já era "capuquinho". Com dimensões reduzidas, pegava no máximo sete jogadores na linha. É que Oséas fez de sua fazenda um grande loteamento de terrenos para residência, dando início ao processo que resultou em um enorme bairro. Aos poucos, casas foram sendo construídas, reduzindo drasticamente o espaço para o futebol.
A construção de imóveis, sem o devido planejamento, já estava em curso e fez com que surgisse um córrego de esgoto sanitário por onde corriam os dejetos de casas próximas. Quando a bola caía lá, era uma briga para ver quem ia resgatá-la. Não apenas a pelota, mas também aquele de quem seria a "vez" de pega-la voltava devidamente "perfumado".
As águas servidas eram lançadas em outras áreas nas laterais do campo, alimentando uma vegetação rasteira que os garotos chamavam de "gramadinho" e servia para continuar a pelada deles quando os grandalhões chegavam.
Já em seu ocaso, por volta de 1979, sem os rapazes da "segunda geração" e dominado pelos últimos peladeiros de sua história, o campo era frequentado por aquela turma que encerraria a jornada do Capuco de domingo a domingo, de manhã e de tarde, quase sem intervalo para almoço. As mães pouco se preocupavam com eles, que sempre eram encontrados ali, quando demoravam de retornar para casa. Eram babas amistosos ou apostados, além de esporádicos torneios organizados por Mirinho. Um dos poucos que integrou a segunda e terceira gerações, ele tinha 14 ou 15 anos mas aparentava 10.
Mesmo esquálido fisicamente, era bom jogador e a idade dele pesava em campo, colocando-o em vantagem sobre os mais jovens, que não aceitavam que participasse das disputas valendo dinheiro, como relata Didi, filho do policial Domingos. Esperto, Mirinho não jogava, mas recebia sua cota do arrecadado para premiação. O espaço continuava bastante frequentado por aqueles adolescentes que fechariam o ciclo do Capuco.
Se não resta dúvida quanto ao ano de origem, 1970, é incerto quando findou-se ali a atividade esportiva. Há mais de uma versão sobre o ano exato em que ocorreu a "morte" do campo. O mais provável, conforme apurado com as fontes, é que tenha ocorrido entre 1980 e 1981, ao consolidar-se o processo de urbanização da antiga fazenda.
O Capuco é um capítulo inesquecível, na vida de muitos jovens de famílias de baixa renda de Serrinha, em um tempo em que não havia smartphones ou qualquer tecnologia - mal podiam ouvir música em rádio FM, o que somente era possível quando subiam à Santa, local mais elevado da cidade, onde conseguiam sintonizar as emissoras de Salvador e Feira de Santana.
Dalí não saiu nenhum astro do futebol. Não havia observadores. Mas brincaram muito, se mantiveram distantes das drogas, como proporciona o esporte e fizeram boas amizades. O capuqueiro Teco, de segunda geração, assim define, com o seu talento poético: "amigos da infância e da vida".
NOTA DO AUTOR Está lançado um grande desafio aos que gostam de resgatar capítulos da história recente de Serrinha, esta querida e linda cidade que abre o Portal do Sisal. O escrito acima trata-se apenas de um compilado sobre um dos antigos campos de futebol da Serra, como chama carinhosamente o colega jornalista Tasso Franco, estudioso da memória desta terra. Primeira parte, esperamos, de uma série. As outras praças esportivas de bairros aguardam por relatos de suas trajetórias e espero que possam ser cumpridos por outros colegas que lhes tenham sido mais próximos. Agradecimentos aos importantes colaboradores capuqueiros, especialmente a Agamenon Sales, pois sem eles seria impossível coletar essas informações.
Por Valdomiro Silva (Mirinho)
Jornalista, viveu a infância e adolescência em Serrinha e é radicado em Feira de Santana desde 1984