Pouco mais de um mês após o início da pandemia de Covid-19, a médica
Débora Sant'Ana Siqueira, 33, fechou seu consultório de oftalmologia
para cuidar das pessoas com a doença.
Ela agora divide seu tempo
entre dois hospitais de campanha --anexos ao Hospital Municipal de São
Caetano (ABC) e Hospital da Cantareira (zona norte) --, o Hospital
Municipal do Tatuapé (zona leste) e duas AMAs (Assitência Médica
Ambulatorial) na zona sul da capital paulista.
Há cinco dias,
Siqueira surpreendeu seus mais de 33 mil seguidores no Instagram com um
relato que é frequente. Naquele dia, longe de finalizar a sua jornada --
estava no plantão havia 24 horas e a caminho de mais 12 horas no mesmo
lugar --, ela reclamava de dores de cabeça e pelo corpo, cansaço extremo
e disse que estava fragilizada. Chegou a chorar enquanto pedia a
colaboração da população.
"Nesta manhã eu estava saindo de um
plantão de 24 horas aguardando alguém vir me render e esse alguém nunca
existiu. Nossos hospitais, nossos postos, nossas UTIs estão
sobrecarregadas. Sabe o que eu fico pensando? Hoje está um dia lindo. Eu
poderia estar na praia, num parque correndo, na minha casa. Esse
plantão aqui não existia nos meus planos, mas tudo bem, eu não posso
abandonar o plantão pela metade nem sem médico. Eu não pude escolher."
"Mas
você pode escolher não fazer aquele churrasco com pessoas que não estão
convivendo na mesma casa, você pode escolher adiar aquela viagem com os
amigos, você pode escolher não sair com os amigos", desabafou.
Alimentação
nas horas certas e descanso são questões de sorte. Às vezes, a médica
só tem 12 horas para descansar, e dorme e se alimenta mal.
Médicos
da linha de frente do combate à Covid-19 vivem uma segunda pandemia em
paralelo, caracterizada pelo esgotamento físico, mental e emocional.
"Nesse
momento, não há respiro para os médicos, uma vez que a demanda é muito
grande no país. Médicos e profissionais de saúde estão muito cansados
porque o enfrentamento diário é cansativo e o número de mortes é
impactante. Não é uma doença fácil de se lidar. Muitos médicos e
profissionais de saúde estão desistindo de trabalhar com Covid-19,
pedindo afastamento ou indo para outras áreas, e não querem mais
trabalhar em CTI [Centro de Terapia Intensivo]", afirma Alberto Chebabo,
vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia.
Segundo
a pesquisa nacional "Os Médicos e a Pandemia de Covid-19", feita pela
AMB (Associação Médica Brasileira) e divulgada em fevereiro deste ano,
42,5% dos médicos relataram que nas unidades em que atuam há sobrecarga
de trabalho e os profissionais apresentaram mudanças bruscas de humor
(25%), exaustão física ou emocional (39,5%), estresse (45,2%),
dificuldade de concentração (19,8%) e ansiedade (46,6%).
Metade
deles, de acordo com o estudo, não vê na população a adesão às medidas
de combate ao coronavírus, 45% destacam a falta de uso de máscaras,
13,3%, a falta de distanciamento físico e 10,6%, a presença em
aglomerações, reuniões, festas e confraternizações em bares e
restaurantes.
"É preciso mostrar que nós, os profissionais,
estamos cansados para servir como alerta para as pessoas. Sentimos uma
dor na alma que vem para o nosso corpo. As pessoas precisam se
conscientizar, ter a noção de que a doença é letal e entender a
gravidade", diz Siqueira.
Nas longas jornadas de trabalho, esses
profissionais vivem as superlotações nas UTIs, a carência de leitos e o
temor da falta de respiradores, medicamentos e insumos.
De acordo
com dados da plataforma SP Covid-19 Info Tracker, criada por
pesquisadores da USP e da Unesp com apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo) para acompanhar a evolução da pandemia
no estado de São Paulo, em 1º de março de 2021, as UTIs do estado
tinham 7.281 internados com Covid-19. No dia 31, já eram 12.961, uma
aumento de 78% dentro do mesmo mês.
O médico Mario Peribañez
Gonzalez, 50, coordena uma equipe com cerca de 45 médicos no Instituto
Emílio Ribas, no Pacaembu (zona oeste). Em fevereiro de 2020, foi à
Índia para um retiro de meditação e, dias após retornar ao Brasil,
começou a atuar no enfrentamento à pandemia de Covid-19.
Ele
pratica a meditação diariamente, o que o auxilia a lidar com os
dissabores causados pela pandemia. No Emílio Ribas, muitos profissionais
ficaram doentes, houve médicos que precisaram de intubação e uma médica
morreu.
"O pior de tudo é completar um ano de pandemia com um
aumento de casos pior do que foi nos primeiros momentos, principalmente
por falta de adesão às medidas sanitárias. É muito desgastante ver os
doutores de redes sociais divulgando informações erradas e tratamentos
comprovadamente ineficazes", afirma Gonzalez.
"Somos nós que
estamos lá vendo as pessoas morrerem. Cada vez que há um aumento
exponencial de casos, o estresse aumenta muito, porque é preciso lidar
com a escassez. Pela total ausência de adesão das pessoas, temos que
lidar com situações em que enxergamos a possibilidade de faltar itens
essenciais para a manutenção da vida. Participar disso é altamente
estressante para qualquer ser humano. A gente vive com medo de uma cena
temida, que é o dia de não ter respirador para todos, com mais gente do
que pontos de oxigênio, com falta de itens essenciais para manter as
pessoas intubadas sedadas."
"Ninguém quer ser herói nessas
circunstâncias. É desumano. Por isso, me choca não ter o respaldo da
sociedade, que é ficar em casa. Eu sei que todo mundo precisa ganhar
dinheiro, mas que tal não morrer primeiro? Que tal não matar? Se você
transmite, contribui para que mortes aconteçam. Esse negacionismo leva
as pessoas a uma desassociação da realidade. As poucas vezes que pedi
para alguém colocar uma máscara quase apanhei na rua", relata.
Para
César Eduardo Fernandes, presidente da AMB, a única alternativa para
acabar com o esgotamento dos médicos é diminuir o número de internações
de casos graves.
"Para isso, precisamos diminuir a
transmissibilidade do vírus, que podemos fazer com a vacina e as medidas
já divulgadas e conhecidas por todos e outras até mais intensas e
severas, como a restrição de circulação e o lockdown", afirma.
"Num
cenário inóspito e adverso como esse, os médicos estão trabalhando
excessivamente, vivenciando uma situação desoladora e difícil com o
insucesso por conta da gravidade da doença. São situações que mesmo para
os muito treinados, como os intensivistas, que convivem diariamente com
a morte, são extremamente penosas", diz.
Fernandes explica que o
acúmulo da fadiga progressiva com a deterioração emocional decorrente
do trabalho leva à exaustão física e emocional de caráter profissional,
conhecida como síndrome de burnout.
"Um médico nessas condições
perde o que de mais nobre ele tem, que é sua capacidade de avaliação, de
julgamento, de arbitrar a melhor conduta para o paciente, o tempo
adequado para que essa conduta seja tomada, seu espírito crítico."
Victor
Dourado, presidente do Sindicato dos Médicos do Estado de São Paulo,
também afirma que o controle da pandemia aliviaria a tensão sobre o
sistema de saúde e dos profissionais, mas argumenta que faltam políticas
públicas para o combate à doença, como ampliar a vacinação e controlar
melhor o isolamento. "É preciso diminuir a pandemia para diminuir a
sobrecarga dos médicos e a exaustão", diz Dourado.
"O trauma da
pandemia vai marcar, mas não viveremos uma falta generalizada de médicos
no futuro. Precisaremos pensar sobre a forma de organizar o sistema
pela ".Fonte:Por Patrícia Pasquini | Folhapress