O Whatzapp, maior ferramenta de troca de mensagens já criado, tem milhões de grupos. De infância, da escola, da faculdade, do futebol, do trabalho e de quase tudo que se possa imaginar. Há quem não goste de participar deles. E existe também muita gente que, de tanto apreciar, faz parte de vários. Em 21 de outubro de 2019, foi criado o Capuqueiros, pelo corretor de seguros Luiz César Costa Lopes, um serrinhense radicado em Feira de Santana há quase quatro décadas e que será melhor apresentado adiante. Essa turma é formada de amigos da adolescência na Serrrinha dos anos 70 e início dos 80. Tanto tempo depois, muitos dos integrantes já não residem por lá, obviamente. Estão espalhados por várias cidades.
Todos eles tem mais de 50 anos, com exceção dos irmãos ou filhos de alguns, "admitidos" por consenso. E porque Capuqueiros? É assim chamado aquele que bateu baba no extinto campo de várzea denominado Capuco ou Capuquinho, nos arredores do bairro de Oséas. Em crônica anterior, aqui publicada, o leitor mais curioso pode saber como foi criado este que foi um dos mais famosos campos de bairro de Serrinha, a partir da ideia daquele que se tornaria tempos depois um astro do futebol daquela cidade, o super-zagueiro Bizagão, jogador raçudo e viril que chegou a vestir a camisa da Seleção local.
É proibido foto ou vídeo de sexo, em respeito às sagradas esposas, que inadvertidamente podem acessar o grupo no celular e não gostar do conteúdo. Mulher bonita, no entanto, vez ou outra, um gaiato posta. Ninguém reclama. "Deve haver tolerância com a contemplação e valorização da beleza feminina", justifica o poeta "Seu Teco", um dos mais atuantes do grupo. Radicalmente vetado é a política. Quem se arrisca a descumprir a regra é punido com suspensão - medida que já atingiu a alguns. Em caso de reincidência, o afastamento pode ser permanente. A religião também é evitada, assim como xingamentos, especialmente nas fervorosas discussões sobre o futebol. Até aí, Capuqueiros seria apenas mais um grupo de zap a reunir pessoas que se conheceram na adolescência morando em ruas vizinhas, estudando nas mesmas escolas, que se divertiram nas mesmas discotecas e, principalmente, jogaram futebol no Capuco. Mas, então, o que o diferencia de outras tantas tribos da internet? Provavelmente, uma iniciativa muito especial e que, sobretudo nos tempos de hoje, todas as pessoas, uma vez reunindo condições, devem exercitar: a ajuda ao próximo. A forma como esse pessoal decidiu inserir a solidariedade no seu reencontro é bastante peculiar e se trata de uma prática muito difundida entre eles, na adolescência: a velha e boa "lotebinha".
A denominada Lotebinha Solidária do Capuqueiros é uma loteria esportiva, como o nome sugere. São 10 jogos, com direito a quatro duplos. Dois prêmios mensais - um a cada quinzena, com jogos de certames futebolísticos nacionais e também internacionais. Metade do valor arrecadado vai para o ganhador e a outra parte é doada. O valor é utilizado na compra de alimentos ou custeio de remédios/exames médicos para necessitados. O vencedor da "rodada" tem a prerrogativa de indicar o contemplado. Quando há mais de um ganhador, eles decidem entre si quem vai escolher.
Em quase um ano desde que foi instituída a loteria dos capuqueiros (começou em 18 de julho do ano passado), várias doações foram feitas a partir da receita do jogo. Por três vezes, metade do prêmio foi entregue em cestas básicas para a Igreja Católica da vizinha cidade de Teofilândia distribuir na comunidade carente daquele município.
Quando a neta de um capuqueiro sofreu acidente de motocicleta, em Serrinha, antecipou-se o valor de um prêmio para fazer com que a ajuda chegasse de imediato.
Outros capuqueiros em dificuldade econômica foram beneficiados. Um deles, que identificaremos pelas iniciais D.S., enfrenta problema de visão e luta para obter direito previdenciário. Ele já foi indicado várias vezes, recebendo cesta básica, apoio financeiro para exames médicos e compra de peixe, produto que revende na feira livre de Serrinha. Além disso, um dos seus grandes amigos no grupo, o advogado Jorlando Andrade, vem lhe dando assessoria jurídica gratuita, junto ao INSS.
Igualmente com a saúde debilitada, o capuqueiro a quem chamaremos de "E", sósia do galã do cinema Charles Bronson, foi visitado pelo amigo Adelson (este também sósia de outro ator famoso, Richard Gere) em sua residência, para entrega de alimentos e uma pequena quantia em dinheiro, fruto da Lotebinha e de pequenas doações. Mesmo de muletas, "E" recebeu o visitante com grande alegria e emocionou a todos, em seu agradecimento. Um novo apoio está sendo articulado pelo grupo para ajuda-lo.
Importante salientar, a solidariedade desse pessoal vai além da loteria. Também faz arrecadação entre si para ajudar a pessoas necessitadas. O capuqueiro e radialista José Ribeiro, locutor de grande audiência da rádio Regional, descobriu em suas reportagens pela zona rural de Serrinha para o "Cobertura Total", canal jornalístico que mantém no Youtube, um homem vivendo solitária e precariamente.
Ao assistir ao vídeo-reportagem, vários integrantes se mobilizaram imediatamente para colaborar com a compra de alimentos e ajudar a este cidadão. Destaque para Zé Durval, coiteense radicado em Feira há 41 anos. Integrante do grupo, o representante comercial conseguiu vários amigos para doar. A quantidade de donativos recolhida foi suficiente não apenas para socorrer ao homem da reportagem, mas a quatro outras famílias carentes.
Quando "pifou" o celular do capuqueiro "A.S.", alguns dos seus amigos no grupo se juntaram a familiares dele para colaborar com a compra de um aparelho novo e doar pra ele, que um dia foi o "Oscar" do antigo campinho - referência ao ex-zagueiro da Ponte Preta e Seleção Brasileira, pela qualidade do seu futebol. Ele viria também a receber premiação integral da Lotebinha Solidária, uma vez que se encontrava com seu benefício do INSS suspenso temporariamente.
Mais recentemente, uma senhora em Conceição do Coité, que teve a residência incendiada e perdeu vários bens, foi alvo de uma dessas campanhas. Lá reside o capuqueiro Vladson, conceituado judoca baiano. Ao postar o drama da dona de casa no grupo, seus companheiros de Whatzapp se apresentaram para colaborar e enviaram doação via pix. A entrega de alimentos deixou muito feliz a mulher, em suas sérias dificuldades.
O CRIADOR DO CAPUQUEIROS
Primogênito dos nove filhos do falecido Zito da Oficina, que foi figura muito popular em Serrinha, Luiz César Costa Lopes comemora o êxito do Capuqueiros, por ele idealizado. Atribui o sucesso ao "elevado nível dos seus integrantes". É um administrador muito tranquilo, que evita conflitos e sabe aparar arestas, quando necessário. Tem pulso firme, diante de indisciplina às regras, sobretudo se alguém posta conteúdo político, terminantemente proibido por ser um tema "desagregador". Não comanda nem decide sozinho. Há uma equipe de apoio que participa da gestão e ele faz questão de consultá-la sempre que existe algo polêmico a tratar.
César tem alguns apelidos pelos quais se tornou conhecido em Serrinha, na sua juventude. Primeiro, "Bicudo" (codinome que ele parece não gostar muito). Só quem insiste em chamá-lo assim é Zé Durval, seu "alter ego". Prefere Bigu, como os amigos também lhe tratam pela semelhança com o ex-jogador de futebol do Flamengo e Vitória, seu time de coração. Ele chegou a Feira de Santana em 1983 bastante jovem, aos 19 anos, para estudar e trabalhar. Fez Ciências Contábeis na UEFS. Logo ingressou no antigo Banco Econômico. Integrou seus quadros até a instituição de Ângelo Calmon de Sá fechar as portas. Continuou na empresa, atuando na área de seguros. Convidado por uma outra seguradora, a Fox, permanece por lá até hoje.
O REENCONTRO, APÓS DÉCADAS
Era janeiro de 2020, quando os capuqueiros fizeram o seu memorável reencontro, celebrado na zona rural de Serrinha. Naquele dia 18 do primeiro mês do ano ninguém imaginava o que estava por vir, a terrível pandemia de coronavírus, que abala o mundo e muda sensivelmente os hábitos de todos. Então, senhores de idade entre 50 e 60 e poucos anos, que se conheceram na infância e adolescência em Serrinha, viveram momentos de fortes emoções. Afinal, muitos deles, não se viam a cerca de 30 a 40 anos. Uma parte ainda vive em Serrinha. Outros, deixaram a cidade há três, quatro décadas e encontram-se espalhados por aí.
O ponto de partida para o restaurante não poderia ser outro. Todos se reuniram pela manhã no tradicional Boteco do Teco, o autor de "amigos da infância da vida", como ele todas as manhãs cumprimenta ao grupo. A cada capuqueiro que chegava, um longo e carinhoso abraço. Muitos precisaram se apresentar uns aos outros, pois não se reconheciam, após tanto tempo sem se ver. A prévia do encontro já revelava o que estava por vir: uma tarde de muita "resenha" e inúmeras perguntas entre eles, para saber como encaminharam as suas vidas. Dali seguiram para o local onde por uma década rolaram os babas do Capuco, totalmente ocupado por residências e estabelecimentos comerciais. Posaram para foto, soltaram foguetes.
Meia hora depois, estavam todos no restaurante. Após oração, a ordem era música, muita música. E no volume maximo permitido. Como faziam na adolescência, falavam aos gritos, um no ouvido do outro. Uma algazarra, mas para eles, normalíssima. As baladas dos Fevers abriram os trabalhos, seguidas logo depois pelas canções do Renato & Seus Blue Caps. Quando o ambiente já estava "em alta", iniciou-se a discoteca, ao som dos hits de Patrick Hernandez, Giorgio Moroder, Donna Summer e Bee Gees, inesquecíveis para aqueles caras que se derretiam de suor nas pistas das boates Papagaio, Dancin Days e Snob.
PERSONAGENS
Assim, no grande almoço de confraternização, todos souberam que um dos antigos galãs capuqueiros, o super-conquistador Raimundinho, tornou-se policial militar, hoje aposentado, vivendo em Brasília há muitos anos, onde também reside o motorista Paulinho, mais um que veio de longe para a confraternização; o arisco camisa 7 Quinquinho é comerciante de fogos de artifício e artesanato em Barreiras, enquanto o clássico meio-campo Delmar é mais um militar aposentado que reside em Araci, onde também mora o comerciante Luciano; o antigo goleiro Vladson é professor de arte marcial em Coité.
O baixinho e habilidoso meio-campo Mirinho se tornou o jornalista Valdomiro Silva; o limitado zagueiro Zé Durval (ZR) é um bem sucedido representante comercial; o goleiro gordinho Vá é o profissional de segurança Edvaldo e seu irmão, o raçudo jogador Didi, um comerciário que há 30 anos trabalha na mesma empresa; Berguinho, o Berg, que logo percebeu não ter talento para o futebol, ingressou na Petrobrás e hoje tem vida confortável como aposentado (trocou a batida de caju dos tempos de vaca magra pela elitizada Heineken); o filho do "Velho Jovem" Nivaldo (ele e o primo Raimundinho disputavam o posto de maior sedutor da época), tornou-se comerciante; o ex-caminhoneiro Carlos Araújo agora vive confortavelmente em sua chácara. Todos os mencionados nessas linhas são residentes em Feira de Santana.
Os que moram distante de Serrinha foram recepcionados pelos capuqueiros residentes na cidade: Teco (Hariélio), ao mesmo tempo habilidoso e um viril lateral direito, além de homem da poesia, é agora "Seu Teco", do Boteco; Dé, o black power fundador do eterno "São Paulinho" da rua Basílio Cordeiro, é o famoso radialista José Ribeiro; o craque Tova tornou-se o conceituado professor de musculação Geovany ou GTrayner; Shuíla (André Sales), zagueiro clássico, luta por sua aposentadoria; aposentados estão o habilidoso meia do Bahia da Rodagem Adelson Maia, que por muitos anos transportou cargas nas rodovias deste país, e Rui Berg, o artilheiro, já descansando de sua jornada na Vale do Rio Doce.
Edmilson, o Bizagão, continua fazendo pães; o exímio cabeceador Jorlando, um concorrido advogado; Domingos, o voluntarioso meio-campista que após anos no Rio de Janeiro retornou à terra natal, é o "Macedo Marketing"; o zagueiro Valzinho seguiu o pai Zito, é dono de oficina de automóveis; Gildo "Guns", um dos "admitidos" por ser irmão dos capuqueiros Dé, Mirinho e Tova, é músico e especialista de apostas online. Destaque no grupo, organiza a Lotebinha Solidária e participa ativamente de todas as campanhas de colaboração.
Faltaram ao encontro, e estão ansiosos pela próxima oportunidade , várias personalidades capuqueiras, a exemplo do coringa Agámenon (o "H"), hoje funcionário público; Nilton Monteiro (eterno disc-jóquei capuqueiro e dono da melhor radiola do seu tempo, a Taterka Linear), que se tornou pintor de automóveis; o terceiro Edmilson do grupo, um grande driblador, aposentado da Vale e que viveu muitos anos no Pará, hoje curte a vida passeando pelas praias do norte e nordeste do país; o excelente meio-campo Edinho, radicado em Salvador; Nego Dó, o hoje segurança Jorge, que morou "parede e meia" com o Capuco; também contam os dias para reencontrar seus velhos amigos o vascaíno-Vitória Jivanildo (irmão de Nilton, Ruy e Aylton) e seu primo radialista Alex, o Chocó.
ELES CONTINUAM FAZENDO A SUA FESTA
Toda sexta, os capuqueiros começam a animar o grupo, o que normalmente dura todo o fim de semana. O futebol e a música são o combustível. Em tempos de Campeonato Brasileiro, os que são Vitória torcem para o Bahia ser rebaixado na Série A. Os torcedores do Bahia, para o Vitória cair da B para a C. Parece que a maioria se diverte mais esperando pelo fracasso do time rival, certamente pela dificuldade que esses clubes tem de conquistar algo de valor em nível nacional, pelo menos nos últimos anos.
Mas o que embala mesmo essa turma é a música. Alguns fazem questão de mostrar a sua alegria, em áudio e vídeo. O aposentado petroleiro Berguinho apresenta as suas "armas" (caixas de Heineken para consumir no fim de semana, estoque que quase sempre ele tem que complementar no domingo); Carlos, exibe sua mistura predileta para o aperitivo antes do almoço (Bacardi Limão com cerveja); Teco, o churrasco no quintal, com filhos e netos.
O músico Gildo "Guns" todos os domingos tem sua jornada de cerveja das 11 às 17 horas, solta a voz e faz do grupo um karaokê; Raimundinho curte música e uma boa cerveja com os filhos, enquanto aguarda o jogo do seu Pó de Arroz; César reencontra os colegas de Banco Econômico e "entra em água" no sábado à tarde. Didi toma sua cerveja na região do Jóia da Princesa, com saudade dos jogos do Flu; Quinquinho, em Barreiras (depois de ir à missa), posta fotos se deliciando nas águas do rio de Ondas; Adelson, também após a igreja, celebra a vida com a sua eterna "love", Edna; Jivanildo, o "plantão esportivo", logo cedo informa quais todos os jogos do dia e onde são transmitidos, e não dispensa a "gelada" do domingo. Torce por sua dupla V-V (Vasco e Vitória) e "seca" Flamengo e Bahia.
Mirinho começa a beber suas três latinhas do dia quando todos já estão na saideira, mas ainda em tempo de trocar dicas de músicas antigas com Berguinho; Vladson, em Coité, saboreia uma puro malte assistindo as intermináveis "laives" da pandemia; Zé Durval, após "tomar todas", se o Bahia ganhar, parte para o seu esporte predileto, a repetição de emojis e gifts da internet até esgotar a paciência de todos (quando o time perde, ele se deprime e desaparece).
O mais importante é que, ao mesmo tempo em que mantém o respeito (raramente acontece atrito entre eles), se orgulham de terem conduzido suas vidas com dignidade, longe das drogas e apenas curtindo cerveja, sexo e rock and roll. A maioria oriunda de famílias economicamente menos favorecidas na Serrinha do seu tempo, teve que trabalhar desde cedo para garantir o dinheiro da matinê no Marajó e, mais tarde, no final da adolescência, das gostosas pornochanchadas brasileiras nas películas noturnas deste cinema que por tantos anos foi a grande opção de lazer de todos eles. Ou ainda para garantir o ingresso e a cerveja nas boates serrinhenses onde passavam tardes e noites dançando e paquerando. Constituíram suas famílias, criaram seus filhos e, hoje, comemoram a bênção de se tornarem vovôs. Salve os capuqueiros!,Texto: Jornalista- Valdomiro Silva-